segunda-feira, 30 de abril de 2007

Viagem de uma Vida


Fazia tempo que planeara aquela viagem... e, no entanto, e apesar de ter feito todas as listas e listinhas e de ter acrescentado "post it" aqui e além para nada esquecer... havia algo a faltar... ele sentia-o...
Quase desfez e voltou a fazer as malas... ansioso... coração a mil... e nada... tudo parecia estar perfeito, incrivelmente perfeito, talvez perfeito demais... e talvez fosse tanta a perfeição que dava até para desconfiar... era a viagem mais importante da sua vida... ou pelo menos a mais importante dos últimos tempos... uma viagem que demorou meses a preparar mas anos, talvez até uma vida inteira a decidir...
O destino não era certo... mas era seguro... ia a caminho do desconhecido, embarcava no comboio da felicidade que circulava à velocidade do amor até onde o destino quisesse...

Estava tudo pronto... estava na hora... mas não naquela hora que os ponteiros marcam... numa hora que apenas a Estação do coração possui... embarcou... subiu os degraus da carruagem com animo e coragem em cada um dos bolsos... sentou-se, entrelaçou as pernas uma na outra e disse ADEUS... a tudo... e a todos que deixa neste apeadeiro da vida... e arrancou... sem olhar para trás... deixando toda a bagagem de uma vida ali mesmo... não abandonada... mas à espera da sua volta... no mesmo comboio que agora o leva...

Partidas




Ali estava ela, linda, sensual e com o olhar cintilante, repleto de sonhos. Sentia-se poderosa. Fizera a depilação, as unhas e arranjara o cabelo, com volume, como ele gosta. Há muito que haviam planeado aquele encontro. Sentia-se consumida pela saudade e pelo desejo. Mas estava também receosa, pois não estavam juntos há tanto tempo e não sabia como nenhum dos dois iria reagir quando se voltassem a encontrar. E se fossem indiferentes um ao outro? Se já não houvesse atracção ou empatia? Se se sentissem constrangidos e já não soubessem conversar? Começava a sentir-se ansiosa. Afinal, sonhara com aquele momento todas as noites desde a última vez que o deixara, há 1 mês, 3 dias e 5 horas. Também sabia os minutos... Vestira o conjunto de lingerie preto que o excitava tanto. Aquele soutien rendado no decote e os boxers com o fecho. O que ele gostava de brincar com aquele fecho... Quantas vezes imaginara o reencontro, as suas grandes mãos a abraçarem-na e a despirem-na lentamente. Os seus olhos presos nos dela. Os lábios húmidos... Estremeceu com um arrepio de excitação. Olhou para o relógio e, de repente, sentiu um novo arrepio. Um mau pressentimento. Vindo do nada surgiu um pensamento que a atemorizou, mas sorriu incrédula. “Não pode ser. Não sejas idiota. Ele nunca faria isso.” O comboio finalmente parou. Apressou-se a sair, de pernas bambas com a ansiedade. Ele já estaria à espera dela. Foi sempre pontual e o comboio tinha tido um atraso de 15 minutos. A estação estava vazia. Era o último comboio do dia. Dele, nem sinais. Foi até à porta de saída para ver se o encontrava, mas nada. Estremeceu, lembrando-se do pressentimento que tivera minutos antes de o comboio parar. “Ele não veio!” Subitamente, olhou para cima... enganara-se na estação.
*Foto de Pilar Mendes Dias

domingo, 29 de abril de 2007

A Trip to the (Very) Distant Future




...dou por mim de malas e bagagens nas mãos em frente a uma porta de vidro fosco com um logotipo que não reconheço. Em baixo vejo uma inscrição que tento ler mas não consigo pois o ligeiro movimento para a frente faz a porta abrir... avanço e encontro uma plataforma que se assemelha a de uma estação ferroviária.
Meto a mão no bolso e descubro um cartão de plástico translúcido que parece ter uma fotografia minha em holograma interno que se pode observar de ambas as faces e no topo, ao centro, o mesmo logotipo em tons azul celeste que não consigo descodificar.
Olho em volta... não vejo ninguém por perto... do outro lado da plataforma observo algumas pessoas sentadas num banco, tal com eu, repletas de bagagem.
Oiço um som estridente ao qual se segue uma informação sonora que não consigo entender... estou longe demais... segundos volvidos começo a ouvir um zunido, um deslizar metálico acompanhado de um certo magnetismo que à medida que os segundos passam aumenta de volume e frequência... olho para o meu lado direito e até ao horizonte a única coisa que consigo descortinar é algo que se assemelha a um carril formando uma espécie de linha férrea.
Sou surpreendido... num repente uma sombra toma conta do sol e com ela uma brisa invade-me a face... num repente olho em volta e ao meu lado está agora um comboio, algo estranho, futurista... em tons prateados e com vidros escuros... de imediato a plataforma outrora vazia é invadida por inúmeras pessoas... homens, mulheres e algumas crianças, todas com um ar apressado e igualmente com sacos e malas nas mãos e penduradas ao ombro... oiço um outro som e abrem-se todas as portas do comboio... fico por momentos suspenso, olhando as pessoas que entram e saem apressadamente das diversas portas... fico quase sozinho na plataforma... num impulso quase mecânico e de repetição dos gestos que observei entro também no comboio, passo o cartão num leitor e sento-me num lugar ao fundo da carruagem, à janela como eu gosto... ou penso que gosto...
Acomodo a bagagem e recosto-me na cadeira sem saber muito bem o que me espera ou para onde vou... olho em volta... estão todos muito ocupados, lêem jornais e revistas, falam ao telemóvel... oiço uma campainha que faz anunciar uma voz que afirma imperativa “Senhores passageiros... dentro de 15 segundos iremos partir em direcção ao Aeroporto Internacional da Ota... por favor ocupem os vossos lugares... a viagem demorará 14 minutos... obrigado por viajar com a CFF”.
Recosto-me novamente na cadeira... fecho os olhos e sinto um impulso do comboio a iniciar o seu movimento... abro os olhos... vejo apenas escuridão... olho em volta... estou no meu quarto... são 4 da manhã...

Partidas e Chegadas




A primeira vez que andei de comboio tinha 18 aninhos e começava uma nova fase da minha vida, cheia de sonhos e ilusões, com muitos projectos pela frente, cheia de garra. Ia apanhar o intercidades para Coimbra, onde entrara na universidade. Era o realizar de um primeiro sonho. Nunca havia andado de comboio, portanto era mais uma coisa nova em milhares de novas sensações. Não sabia que havia carruagens de 1.ª classe e carruagens de 2.ª; era quase como se houvesse pessoas de 1.ª classe e pessoas de 2.ª. Não me custaram as despedidas. Era a primeira vez que ia sair de casa, viver noutro sítio, com pessoas que não conhecia de lado nenhum, numa cidade também ela desconhecida. Mas não me custaram as despedidas. Pelo contrário, no rosto levava esboçado um enorme sorriso, grande ansiedade em iniciar um novo caminho. Pelo caminho, perdi-me em pensamentos e reflexões, encontrei-me dentro dos meus sonhos e estudei os passageiros ao meu lado, concentrados nas suas leituras, esquecidos nas músicas que ouviam por um discman (ainda não se usavam iPods nem leitores de mp3), adormecidos ou simplesmente com o olhar vagueante pelo exterior. Cheguei ao destino com um ar triunfal: veni, vidi, vici!
Da última vez que fui a uma estação de comboios não parti dentro de nenhum deles; mas senti-me partir com ele. A ansiedade e a alegria da partida foram substituídas por um amargo e tristeza, por um medo da perda, um não querer deixar ir. Não me perdi em sonhos, projectos e ilusões; perdi-os antes a eles. Fiquei... mas tive de o deixar ir.
*Foto de Pedro Moreira

Apresentação


O "A ver comboios passar..." é um projecto colectivo que consiste na apresentação de textos de vários autores tendo como ponto central um comboio ou estação ferroviária. A ideia partiu do pensamento de que na estação da vida não podemos ficar "a ver comboios passar", mas temos de ser passageiros dela; além disso, as estações constituem centros de emoções, havendo um pluralismo de expressões nos rostos de quem por lá passa. Um bom fotógrafo sabe disso. E, já agora, aproveitamos para convidar os amantes de fotografia a enviarem-nos fotos a p&b dentro deste tema para o nosso email (averpassarcomboios@gmail.com).

*Foto de Ralf Beier (p&b nosso)

sábado, 28 de abril de 2007

Sem hora marcada


Foi numa noite perdida no tempo que a encontrei. Esperava por aquele comboio havia muito, já nem ela mesma sabia. Há muitas semanas que o tempo havia parado e, desde então, ali se encontrava, de olhar cheio, fixo no horizonte onde havia de surgir o comboio por que esperava fazia muito. A estação parecia abandonada tal era o silêncio e a ausência de vida. Não se viam passageiros nem funcionários da CP. Apenas ela, sentada naquele banco, discreta, concentrada nos seus pensamentos. Ao seu lado tinha pousada uma mochila. No seu regaço, um livro aberto, esquecido, já que o seu olhar não se desviava do fundo do caminho-de-ferro. O tempo parecia não passar, o comboio parecia não chegar e ela ali estava, há quase um mês, à espera, de olhar cheio e mente perdida. Finalmente, o relógio sem ponteiros fez anunciar que a hora se aproximava e uma voz quebrou o silêncio: “Vai dar entrada, na linha número 1, o comboio procedente de um passado de incertezas e com destino ao fim da ansiedade. Efectua paragens em sonhos, insónias, projectos, dúvidas e encontros.”
*Foto de Filipe Santos (p&b nosso)