sexta-feira, 25 de maio de 2007

A quem nunca vi


Foto por daniel camacho


Era já noite cerrada... deitado no seu lugar naquela carruagem fria tentava enroscar-se o máximo que podia a um pequeno casaco... único agasalho que possuía. Era verão, pelo menos era o que o calendário dizia, mas o frio que se fazia sentir parecia querer fazer acreditar a todos que estávamos no pico do inverno... enroscado, meio tapado... ali permanecia ele, tentando aquecer-se há longas horas. A cada vez que a porta se abria e dava lugar a mais uma entrada ou saída era como se a fogueira que tanto se tinha esforçado por acender se apagasse com uma bola de gelo, caída dos ramos de uma qualquer árvore próxima.

Era uma noite fria, muito fria... mas luminosa... uma lua gigante brilhava lá fora e os seus raios entravam abruptamente pelas vidraças cada vez que no trajecto o arvoredo se esquivava... mas nem essa luz o aquecia... era branca... branca com a neve... num tom quase azulado... fluorescente... e também ele gélido.

Enroscado, ali permanecia... na mão apenas segurava uma fotografia enroscada e desbotada pela chuva, sol e suor... fazendo lembrar o caminho pelo qual passara... tal como o homem... que também não era velho... nem novo... digamos que era de pouca idade mas que a vida e as agruras já lhe tinham tomado conta do seu aspecto mais jovial... segurava entre mãos aquela fotografia... acredito mesmo que era essa a única coisa que o aquecia... para ele, aquela imagem era com o núcleo de uma fogueira que lhe aquecia o coração... mas da fotografia já pouco restava... apenas se vislumbravam alguns traços, talvez um rosto... perguntei-lhe quem era... apenas me respondeu: é parte de mim... uma enorme parte de mim...

Dedicado a alguém muito especial que nem sequer sabe que o é...

terça-feira, 22 de maio de 2007

Uma Parte de Nós

Foto de Claudio Marcio Lopes

Obrigada pela oportunidade que tenho na minha vida, um lugar para a tua vida...…

Muito antes da confirmação científica, nós já sabíamos que daqui para frente não seremos apenas mais duas pessoas neste pequeno mas humilde comboio. A nossa viagem seguirá um caminho a três!
Não será um simples passageiro a mais, esse pequenino, ou mais conhecido por nosso "peixinho traquinas", é a minha semente da esperança.
Enquanto os médicos, supostamente sabidos na matéria, me confirmavam que meu pequenino não ia crescer normalmente dentro de mim, ele mostrou ao mundo que é um Ser, embora pequerrucho, mas com uma enorme força de vontade e muito corajoso para enfrentar qualquer obstáculo que impeça a sua existência.
Hoje sinto-te a dar mergulhos dentro da tua carruagem subaquática, e já reclamas comigo quando te aperto sem querer…digamos, tal pai, tal filho! "Refilões!"

Porém, temos consciência que ainda há um longo caminho a percorrer e muito carvão para queimar, ah pois é...pensam o quê? Nós vamos no Regionalíssimo, para podermos aproveitar todos os momentos preciosos e apreciar a paisagem lindíssima que a vida nos proporcionará...…

sábado, 19 de maio de 2007

A Hora da Partida

Foto por: Luís Filipe Montanha Santos Teixeira

...malas cheias até ao limite, duas notas e meia-dúzia de moedas no bolso e um bilhete na mão... assim estava ele...esperava sozinho a hora de embarcar... e estava quase na hora... na hora da grande partida, mas, ao contrário do que se esperaria, não havia familiares nem amigos nas despedidas e nos últimos abraços e desejos de boa sorte... nada disso fazia sentido para ele... e estava quase na hora... a ansiedade apoderava-se dele e não via a hora de poder entrar naquele comboio que o levaria a caminho da grande aventura da sua vida... a maior de todas... mas nem assim se despediu... a sua mãe, visivelmente apreensiva como se ela sabe ser... calada, quieta, sem deixar transparecer nada, um único sentimento, uma única lágrima... mas com aquele olhar que ele conhece bem... apenas disse: “Até já” como quem diz que vai ali ao café da esquina e já volta... mas o “até já” dela era diferente... sempre foi e ela sabia-o bem... era um “até já” que soava como sempre soou a “até sempre”... uma espécie de “para onde vou levo-te comigo no meu coração”... duas lágrimas caíram, quase empurradas pela mão que as limpava antes que aparecessem por completo... e só isso... nada mais... para ele a hora da partida é como outra hora qualquer... para ele não é a hora em que se parte que conta mas sim a hora a que se chega ao destino... seja ele qual for...

Na hora da partida ele disse: “Até já” para soar a “até sempre” pois os laços são eternos e não há partidas que os desunam nem chegadas que os fortaleçam...

domingo, 13 de maio de 2007

100 devaneios


*Foto por Adilson Faltz


Eram 100 passageiros, distribuídos por 100 lugares, dentro de um comboio que efectuaria 100 paragens numa viagem que duraria 100 horas a completar o seu trajecto. Esses 100 passageiros, sentados nos 100 lugares do comboio que faria 100 paragens numa viagem de 100 horas, levavam consigo 100 malas de viagem, 100 bilhetes e 100 vontade nenhuma de ir onde quer que fosse. Os 100 passageiros, sentados nos 100 lugares do comboio que faria 100 paragens numa viagem de 100 horas e que levavam consigo 100 malas de viagem e 100 bilhetes e que estavam 100 vontade nenhuma de viajar, envolveram-se em 100 discussões de 100 temas diferentes, 100 nexo nenhum e 100 chegarem a qualquer conclusão, havendo apenas 100 vozes aos gritos. Entretanto, com o fervor das 100 discussões de 100 temas diferentes, 100 nexo nenhum e 100 chegarem a qualquer conclusão, um colar de pérolas partiu-se, espalhando-se pela carruagem 100 contas que fizeram tropeçar os 100 passageiros com 100 malas de viagem, 100 bilhetes e 100 vontade nenhuma de ir onde quer que fosse, distribuídos por 100 lugares, dentro de um comboio que faria 100 paragens numa viagem que duraria 100 horas.

A (Matur)IDADE

Foto por: José Branco


Estava ele sentado no banco da Estação do costume, quando ouviu, da outra ponta, o som imponente de uma conversa acalorada entre duas senhoras que do alto dos seus “sessentas” comentavam a importância da IDADE, esse factor tão decisivo para tanta coisa nas nossas sociedades... tantas vezes ele ouviu na vida a palavra IDADE como uma negação de qualquer coisa que pretendia fazer... "não tens idade para ver este filme, não tens idade para sair à noite, ainda não tens idade para poderes conduzir..."

A Idade... mas afinal que importância tem a IDADE... será que vale só por si... pelo número, pela quantidade de idade que se possui, assim como quem conta dinheiro e quanto mais tiver, melhor! Ou será que contar idade é apenas contar moedas e notas como se todas valessem o mesmo?!

Foi este o pensamento que o levou ao interior do comboio, onde se sentou... as senhoras essas entraram à sua frente e ficaram com os melhores lugares (a idade assim o permite) mas desta vez estavam ainda mais próximas e a conversa parecia não ter fim... o comboio arrancou de forma um pouco violenta dando um valente solavanco que terminou com a conversa por momentos... daí até uma delas lançar a sua perspicácia do ocorrido ao tema de conversa foi uma fracção de segundos: - Vês... eu bem te digo, de certeza que o maquinista é novo... vê-se logo... viste como o comboio arrancou à bruta sem ter em conta ninguém – disse uma delas. Atrás delas estava sentado um senhor de cabelo grisalho e de pele enrugada, nitidamente mais velho que a espaços esboçava sorrisos como se estivesse a divertir-se com a conversa das duas.

Entrou o revisor, pediu os bilhetes, e logo uma delas o questionou: - Olhe, desculpe, o maquinista hoje é novo não é?! - Por acaso não – respondeu de pronto - é até um dos mais EXPERIENTES da casa, tem imensos anos de serviço na empresa... A resposta obtida fez parar a conversa de imediato e o revisor seguiu o seu caminho por entre as carruagens.

Aproximou-se uma paragem e o senhor de cabelo grisalho levantou-se para sair, mas antes que o fizesse e ao passar pelas duas senhoras comentou: - As senhoras desculpem, mas não pude deixar de ouvir a vossa conversa... e acho que estão a confundir as coisas... Velhice nem sempre é Experiência e Idade não significa Maturidade. Guiamo-nos por esse factor porque não conhecemos profundamente as pessoas e pensamos que o normal é que quanto mais velho se é, maior foi a experiência de vida que adquiriu, mais maturidade ganhou e se tornou mais responsável e sensata... coisas a que não somos tão agarrados quando somos mais jovens... mas infelizmente isso não é uma verdade irrefutável e há tanta gente neste mundo com IDADE para ter juízo e com tantas EXPERIÊNCIAS de vida, e que mesmo assim continuam a ter atitudes de criança... não as INOCENTES, mas as IMATURAS e é por isso que temos a sociedade que temos... talvez não queiram perder a “Criança que há dentro deles” mas fazem-no sempre ou quase sempre da pior forma e pelos piores motivos...

sexta-feira, 11 de maio de 2007

Comboios Esquecidos


Foto por: Vasco Jorge

"A vida é feita de estações, viagens, linhas, muitas linhas... e alguns comboios... há comboios pelos quais esperamos uma vida... uma vida inteira, outros pelos quais não esperamos sequer... nuns entramos... noutros nem por isso... para uns olhamos... a outros nem ligamos..."

Samurai R para averpassarcomboios



Estava ele sentado na Estação, na tal que ele tanto gosta, na que tem mais luz, onde os pássaros fazem visitas, onde flores crescem fortes e coloridas... onde as paredes são brancas e luminosas... onde o sol brilha e a luz alumia... quando de repente e sem que nada o fizesse prever... um comboio resolveu aparecer... um velho comboio... que de tão velho, tão antigo e tão perdido no tempo era já um comboio obsoleto, ultrapassado e fantasma...
Ninguém sabe o porque desse comboio fantasma ter feito a sua aparição numa linha desconhecida e que não era a sua... mas apareceu, justamente no momento exacto... em que ele... sentado na Estação... olhava... deslumbrado... para outro lado...
Nem o viu... nem reparou... não escondeu o sol, não provocou sequer, à sua passagem, uma aragem que fizesse vibrar as flores que se galanteavam com o sol... apenas passou... como fantasma que é... sem que fosse sequer notado.

quinta-feira, 10 de maio de 2007

Caminhos Cruzados (3)


*Foto de Luís Filipe Cabaco




(...)

Eram exactamente 15h42 quando o comboio regional com destino ao Oriente partiu. Margarida entrou por um lado da carruagem número 7 e Guilherme por outro lado. Quando se encaminhavam para um dos lugares observaram-se de frente. Sorriram, sentiram-se nervosos e embaraçados. Sentaram-se ao lado um do outro. Olharam-se antes de dizerem qualquer palavra, como sempre fizeram. Para quê perguntar “como estás?” se os olhos lhes dão sempre todas as respostas. “Feliz”. “Nervosa”. “Será que devíamos estar aqui?”. “Tenho saudades tuas.” “Amo-te, tu sabes disso.” “Temo-nos, tu sabes também disso.” Deram as mãos e seguiram assim todo o caminho, sem nunca desviarem o olhar, sem proferirem uma palavra.
Apesar de terem escolhido um comboio que parasse em todas as estações, de modo a passarem mais tempo juntos, o tempo voou e, de repente, ouviram a voz feminina que tanto temiam ouvir: “Próxima estação: Oriente”. Inconscientemente apertaram as mãos com mais força e entregaram-se num longo e doce beijo. Há quase dez anos que tinham dado o primeiro e último beijo. O comboio parou, cada um saiu por uma porta, tal como haviam entrado e afastaram-se sem olhar para trás. Nos seus rostos, caía uma lágrima solitária que lhes morreu na boca...

quarta-feira, 9 de maio de 2007

Caminhos Cruzados (2)


*Foto de Marco Ricca


(...)

Guilherme encontrava-se já a caminho do Entroncamento onde apanharia o comboio de regresso a Lisboa. À janela do lugar 7, na carruagem 7, levava os olhos fechados e recordava o rosto da única mulher que realmente amara na última vez que a vira. Tinha sido a um sábado do mês de Julho. A mulher tinha ido trabalhar e ele ficara em casa com o filho mais velho, naquela altura com cerca de 8 meses. Convidara-a para almoçar. Ela ficou relutante em aceitar por ser na casa dele e não querer desrespeitar a sua esposa, mas acabou por anuir. Lembro-me que demorou muito a chegar e eu dificilmente consegui segurar a ansiedade em estar com ela de novo. Enfim, chegou e desculpou-se pelo atraso mas tinha tido dificuldades em dar com o prédio. Vinha da praia. Estava bronzeada, cheirava a sal e a protector solar. Trazia o cabelo apanhado num rabo-de-cavalo, uns calções e uma t-shirt branca. Estava nervosa, pouco à-vontade e os olhos dela fugiam sempre dos meus. Nunca tínhamos estado assim sozinhos desde que eu me casara. Perguntou pelo bebé pois sentia a falta dele ali para não nos centrarmos tanto um no outro. Disse-lhe que estava a dormir no quarto dele. Entretanto, fui à cozinha fazer-nos cafés e o bebé acordou a chorar. Quando fui ao quarto encontrei-a a pegar nele. Enterneceu-me aquela imagem, dela com o meu filho. Foi difícil esconder os pensamentos que passaram pela minha cabeça naquela altura. Ela percebeu, como sempre acontece entre nós. Nunca precisamos de dizer um ao outro aquilo em que estamos a pensar. Às vezes dava jeito que não fosse assim, especialmente no nosso caso. Depois dei comer ao bebé e ele voltou a adormecer. Voltámos a ficar sós. Ficámos ambos nervosos, ela mais do que eu. Não dissemos nada. Apenas nos perdemos no olhar um do outro e deixámos que os nossos olhos dissessem tudo. Esqueci o mundo, a minha mulher, o meu filho, esqueci tudo. Só ela existia para mim. Não sei como abraçámo-nos, num abraço forte, como se de o último se tratasse sem o sabermos. Os nossos rostos aproximaram-se, os nossos lábios quase se tocaram. Ela afastou-me e lembrou-me que eu era caso, que tinha um filho e que nem sequer devia ter ido ali. Saiu a correr. Nunca mais nos vimos. Ainda nos falámos durante uns tempos mas a minha mulher acabou por descobrir e tínhamos grandes discussões. Nunca consegui esconder de ninguém aquilo que sinto pela Margarida e quando a minha mulher ficou novamente grávida tive de fazer uma escolha e afastar-me. A Margarida compreendeu e nunca me procurou. Ela sempre respeitou o meu casamento. Mas nunca nos esquecemos e, agora, ali estava ele, naquele comboio. “Próxima estação: Entroncamento”

(...)

terça-feira, 8 de maio de 2007

Viagem na Esperança...


Foto por: Renato Marques (Samurai "R")
Foto por: Renato Marques e Grace Snows

E se pudesse explicar o meu dia como uma viagem de comboio... e se bem o pensei, melhor o fiz...

Levantei-me relativamente cedo para apanhar o comboio, mas não tão cedo como previsto, pois a antevisão da viagem que tinha para fazer e o seu grau de importância relativa no universo da minha vida era bastante alto... digamos que o “Higrómetro da Importância” da minha vida andou nos limites na noite passada...



Preparei tudo o que era necessário e saí... ao chegar à primeira estação (Caldas da Rainha), tirei o bilhete e esperei algum tempo, cerca de uns 15 ou 20 minutos que pareceram horas pois ao meu lado e à minha frente circulavam pessoas que exibiam (logo de manhãzinha) um inebriante aroma a CHANEL “Kalak tei” (traduzido dá... Sovaco)... mas lá entrei e me sentei, mas a viagem não demorou mais do que alguns segundos... aparentemente algo de errado se passava naquele comboio, não percebi muito bem o quê mas fui de imediato informado de que não iria conseguir chegar ao meu destino nele e que o melhor seria sair e mudar de comboio... sem outra hipótese no horizonte lá saí, algo contrariado é certo e procurei saber qual o comboio que teria que apanhar... procurei informação junto da Bilheteira mas as informações eram confusas e algo contraditórias, por um lado diziam-me que o melhor talvez fosse apanhar o comboio directo a Lisboa, mas que pelo sim pelo não deveria ligar para a linha informativa de Leiria para saber se apanhando o comboio de lá não seria mais fácil... na linha e após várias tentativas e alguns minutos de uma música monofónica e irritante alguém me diz que naquele comboio também não irei conseguir chegar ao destino dentro do tempo imperativo e assim me decidi a apanhar o comboio de Lisboa... pensando eu, na minha ingenuidade e alguma ignorância, que seria fácil dar com a Estação... o problema é que chegado a Lisboa haviam 12 estações possíveis... - e agora? Em qual terei eu que sair? – pensei eu com os meus elásticos (porque não tinha botões)... consultando uma espécie de cábula que levava pensei ter achado a estação certa... a que me iria finalmente levar ao destino pretendido... entrei ofegante e com o coração aos saltos da corrida de 5 minutos que fiz, aliás, talvez fossem apenas 3 minutos, para chegar antes da hora prevista para a saída do último comboio (a falta de Resistência Aeróbia é um problema grave na sociedade portuguesa, não me canso de o dizer...) mas, azar dos azares, à chegada à bilheteira fui informado que não havia bilhetes, estavam todos esgotados, desde o final da manhã... e agora? – pensei mais uma vez a entrar já num certo estado catatónico de desespero... - o que é que eu vou fazer?




Pensei... e descobri que a única saída possível seria procurar uma das outras 11 estações, uma que ficava num local mais estratégico e onde o comboio passava mais tarde... podia ser que tivesse sorte... e assim fiz...Mal cheguei dei de caras com uma enorme fila de gente mais ou menos desesperada, que tal como eu... apresentavam um olhar de quem veio pedir esmola. Outros porém que adoptavam uma abordagem diferente, alternativa, empinavam o nariz e puxavam pelos galões na esperança que alguém os considerasse mais importantes naquela fila e os chamasse à parte... passados largos minutos, mais de uma hora, lá chegou a minha vez de tentar embarcar mas... era tarde... era já muito tarde... o comboio não espera por ninguém e já tinha partido... e apesar da boa vontade da senhora da bilheteira (a única cara amigável e mais ou menos simpática do dia) nada havia a fazer... por hoje... Restou-me a consolação e a esperança de ter deixado uma reserva para amanhã, no mesmo local, tentar FINALMENTE embarcar no comboio que me leve ao destino quase idílico que tanto tenho buscado com todas as minhas forças nos últimos meses...

segunda-feira, 7 de maio de 2007

A Hora Certa


Foto por: Larry Gaspar


Impaciente caminhava de um lado para o outro do corredor da carruagem... gesticulava sozinho e para si próprio indiferente aos olhares de reprovação e/ou gozo dos outros passageiros... a viagem era longa... e ele sabia-o bem... mas a ansiedade que sentia quase lhe fazia sair o coração pela boca de tanto bater... incapaz de estar quieto um segundo que fosse... roía as unhas e já os dedos nalguns casos, pois começavam a faltar unhas para roer...
Caminhava e circulava pela carruagem como se o seu movimento se transmitisse à carruagem e impelisse o comboio para a frente... sim porque era para frente que queria ir... olhava para o relógio de 10 em 10 segundos como se nesse intervalo de tempo ele pudesse ter parado... e a sua inquietude começa a perturbar seriamente os outros passageiros...
Dali a uns minutos entrou o revisor... avistou-o logo que entrou e não tirou mais os olhos dele... ao chegar perto dele disse: - o que é que o senhor está aqui a fazer? Há algum problema com o seu lugar?!... Não respondeu... apenas levantou os olhos e olhando para o revisor sentou-se por meros minutos, talvez segundos... mesmo esses escassos momentos foram de inquietude constante...cruzava e descruzava a perna, recostava-se, inclinava-se para a frente, olhava pela janela, olhava para o chão... esfregava com os pés um no outro... parecia poder explodir a qualquer momento... o revisor, na volta... apercebendo-se do estado daquele homem dirigiu-se novamente a ele e num tom bem mais calmo e amigável perguntou:
- mas o senhor sente-se bem? Há alguma coisa que eu possa fazer por si?
Desta vez o homem respondeu... com voz trémula e engasgada pela secura que já lhe ia na garganta – Não, não pode, ninguém pode fazer nada por mim! Quem quer não pode e quem pode não quer... – rematou a frase sem no entanto dar mais explicações...
Levantou-se novamente... percorreu a carruagem de ponta a ponta e parando junto a uma senhora na primeira fila de lugares perguntou-lhe: - A senhora tem horas que me diga, se faz favor? Acho que o meu relógio parou!Tenho sim – disse ela... mas não lhe digo... não vale a pena... ainda não está na sua hora... Surpreendido com a resposta levantou a cabeça olhou em frente e voltou subitamente calmo para o seu lugar sentando-se... por momentos parece que toda a carruagem ficou em suspenso à espera que alguém dissesse algo... mas ninguém disse...
Sentado, numa postura bem mais relaxada e calma, assim permaneceu aquele homem sem que ninguém percebesse o porquê de tal mudança repentina até que o Comboio parou... era o local de saída da senhora da primeira fila e esta levantou-se e deslocou-se pela carruagem em direcção à porta. Ao passar junto do homem este virou a cabeça e disse: - como é que a senhora sabe que ainda não está na minha hora?Já vivi muito – respondeu ela – já sou velha, tão velha como os ponteiros deste meu relógio e sei que está longe de achar a hora que procura – e dizendo isto saiu, deixando os restantes passageiros ainda mais confusos...

Passados alguns segundos e já com o comboio a iniciar viagem... o homem levantou-se rapidamente, correu para a porta e gritou para a senhora que já estava a sair do apeadeiro: - Obrigado! Tem toda a razão! Só agora percebi o que quis dizer-me... não adianta eu querer apressar uma coisa que tem o seu tempo... quando chegar a hora... eu saberei... é isso não é?! – e a senhora, à medida que o comboio se afastava cada vez mais e antes de desaparecer totalmente do alcance da vista, acenou-lhe com a cabeça, dizendo que sim... que era isso mesmo...

domingo, 6 de maio de 2007

Caminhos Cruzados (1)

*Foto de Paulo Gato





O comboio chegara a horas. Ela devia de ter uns vinte e oito anos. Não era muito alta nem muito bonita, mas tinha uma elegância e uma simplicidade que me chamaram a atenção. Bem, pelo menos até a atender; aí é que me despertou realmente a curiosidade!
Trazia vestidas umas calças de ganga, uma camisa de seda branca e os cabelos louros soltos. Parecia nervosa e quando se dirigiu à bilheteira pediu-me um bilhete para o próximo intercidades para o Entroncamento, mas fez uma estranha exigência: tinha de ser na carruagem 7, lugar 7. Talvez fosse superstição, mas algo no olhar dela me dizia que não era isso. Dei-lhe o bilhete e fiquei a vê-la afastar-se para a plataforma, de tal modo distraído que nem ouvia os insistentes e impacientes pedidos do cliente seguinte. O comboio chegou exactamente cinco minutos depois, tal como era previsto e ela subiu. Sentou-se no seu lugar, à janela, e ficou a olhar para a paisagem que ficava para trás, absorta nos seus pensamentos. Haviam-se passado quase 10 anos desde que o conhecera. Desde logo ficaram cativados um pelo outro. Aquilo que os unia era demasiado forte para conseguir ser definido ou descrito. Compreendiam-se como a mais ninguém, conheciam-se sem necessidade de recorrerem a palavras, sabiam sempre o que se passava um com o outro, mesmo estando longe, mesmo no silêncio. Todos estes sentimentos mexiam com ela e assustavam-na. Entretanto, discutiram, ela foi injusta com ele e separaram-se durante muito tempo, embora tivessem sempre arranjado forma de saber um do outro. Quando se voltaram a encontrar foi um choque, ele vivia com outra mulher; mas olharam-se da mesma forma, com a mesma intensidade, olharam-se por dentro, perscrutaram, em silêncio, as suas almas e souberam exactamente o que cada um estava a sentir. Ele já tinha casamento marcado, a namorada estava grávida. Ele gostava da futura mulher mas... continuava a amar a Margarida. Esta, desejou-lhe felicidades, sinceras, e não deixaram nunca de se falar. Sempre às escondidas da mulher de Guilherme que morria de ciúmes de Margarida... talvez com razão, embora nunca nada se tivesse passado entre os dois. Voltaram a encontrar-se algumas vezes, com outros amigos e sempre na presença da mulher, mas não conseguiam evitar cruzar olhares e sentiam que se denunciavam, de modo que resolveram deixar de se ver. Até àquele dia... 2 anos depois da última vez que se viram e 1 ano depois da última vez que se falaram...
(...)

quinta-feira, 3 de maio de 2007

O caminho da vida...

Imagem de Renato Marques "Samurai-R"

Já é tarde!
São duas da manhã e lá fora chove à mesma intensidade que foi a tua vida.
Recostada à janela embaciada do frio da noite daquela locomotiva, vejo-me do lado de fora. Embora nada nítido, e com o agravante problema de miopia que carrego comigo, fruto das noites de leitura à luz das velas (…”Como eram Românticas!”…), aquela pequenina lourinha com ar de traquinas a massacrar o juízo do seu pai, era EU!
Como eu gostava de Birras! Quer dizer, gostava é a favor, de certeza absoluta que ainda hoje meio universo deve achar o contrário, não é meu Samurai??!!??
Ouviu-se dos altifalantes da estação uma voz sonolenta de uma mulher a informar aos passageiros que um tal comboio partia daqui a 5 minutos.
A loirinha desatou-se a chorar. Berrava alto e bom som, que até abafava o ruído das máquinas que se preparavam as suas viagens, carregadas de passageiros, malas, animais de estimação, tudo e mais alguma coisa. Pareciam a barca de Noé!
O Pai, aquela figura forte e alta, cheio de vida, de barriguinha do tinto e de cigarro na mão (…”Maldito vício que te embarcou naquela viagem sem regresso”…), tentava pacientemente acalmá-la:
- Russa, minha filha, o comboio não se vai partir ao meio. É apenas uma questão gramatical…
Soltei um sorriso amarelo e abanei a minha cabeça…quem me dera que a tua partida não passasse de mais uma brincadeirinha da língua de Camões. Mas não!
Infelizmente, quando voltei já não te encontrei mais no apeadeiro que da última vez me despedi de ti.
Hoje sigo a minha viagem, no comboio da vida, transportando dentro de mim a semente da esperança.
Não importa o tempo; o espaço, se vais no TGV, no Alfa, no Inter-cidades, no Inter-Regional ou mesmo no Regionalíssimo, nem interessa em quantas estações principais e apeadeiros são necessárias de percorrer, ou mesmo se alguma vez for preciso fazer algum “transfer”.
Importante é viver a viagem intensamente, com toda a nossa força de vontade e, que no destino encontremos todos os nossos sonhos realizados.
Do mesmo lugar que te disse “Até logo, Pai!”, vejo os rastos que o teu comboio deixou ao longo dos caminhos-de-ferro. Meus olhos já não alcançam mais os sinais daquela máquina poderosa, mas sinto-te.
Partiste no “Descansa em paz”, deixando em nós o sentimento de gratidão e muita SAUDADE…


Saudade, Saudade, não sabemos de onde vem, nem para onde vai, só sabemos que tua memória das nossas vidas não sai mais…AMO-TE PAI!!!

O suspeito...


Era já noite cerrada... há muito que o sol tinha dado lugar à lua... e que bela que ela estava... entre as nuvens que insistiam em cobrir o seu reflexo... aparecia, espreitava... como quem com timidez quer ver o que se passa neste mundo...

Parado, imóvel sobre a plataforma do apeadeiro... um homem olhava-a com olhos de quem admira a mais bela preciosidade deste mundo... boquiaberto...

Interrompido abruptamente por um agente da autoridade... que pronuncia em tom grave e “bagaçal” a célebre frase: “Boa noite! Que é que se passa aqui?” – disse ele, altivo... “Não se passa nada Sr. Agente” – respondeu educadamente o homem ainda meio surpreso... “Humm, com que então não se passa nada... então o que é que está aqui a fazer?” – retorquiu mais uma vez no mesmo tom e acrescentando uma certa ironia. “Estou apenas a olhar para a lua...” – disse o homem sem ainda perceber bem o porquê de tanto interrogatório. “Preciso de ver a sua identificação” – disse sem pestanejar o agente da autoridade.

Ao canto do apeadeiro, num local bem mais acobertado da luz daquele luar enorme e mesmo de toda a luz dos poucos candeeiros que brilhavam nessa noite... dois homens sussurravam e trocavam olhares por cima dos ombros um do outro... assistindo à acção daquele Agente policial com uma certa apreensão no olhar...mas ele não se importou com eles... nem sequer com um outro homem visivelmente sob o efeito de alguma droga, mais ou menos legal, que se bamboleava percorrendo o apeadeiro soltando gemidos e pontapeando uma lata de alguma bebida deixada no chão pela incúria de quem a bebeu...

Nada demoveu a atenção daquele policia que se deteve apenas e só naquele homem que apenas olhava a lua naquela noite... registou e anotou todos os seus dados pessoais no seu bloco como quem toma nota de alguma ocorrência de extrema gravidade... tudo isto sobre o olhar incrédulo daquele homem que continuava visivelmente sem perceber o seu “crime”... chegou o comboio pelo qual o homem esperava... à pressa recolheu os seus documentos e entrou na carruagem... o policia esse, ali continuou, olhando com suspeição todos e cada um dos seus gestos...

Já sentado no seu lugar... o homem encostou a cabeça ao vidro e olhando para cima... deitou um último olhar sobre a lua antes de partir e pensou: “Será que se a lua amanhã desaparecer serei eu o principal suspeito?”.

quarta-feira, 2 de maio de 2007

Oriente - Santarém



Acordei. Estava um fim de tarde invernoso e frio. Olhei em redor, com os olhos a perscrutarem o local, tentando ambientarem-se, reconhecerem o espaço. Estava numa qualquer carruagem de um comboio. À minha frente, duas senhoras de idade, nitidamente de classe alta ou média alta, bem parecidas e cultas, trocavam impressões sobre o espectáculo Cats que haviam acabado de ver. Só assim soube em que mês estava: Outubro. Que dia era? Não me recordo. Recordo-me, porém, que também naquela hora o desconhecia. Confusa, analisava todas as pessoas à minha volta, na esperança de reconhecer alguém ou recordar, pelo menos, como fui ali parar. Para onde ia eu? Nem isso o sabia, meu Deus! As duas senhoras à minha frente continuavam a sua entusiástica discussão, disputando acerrimamente em relação ao que o espectáculo tinha de melhor: uma defendia o guarda-roupa, enquanto a outra argumentava que eram as canções. A carruagem ia cheia. Ao fundo desta estava uma mulher nos seus trinta e tais anos com duas crianças pequenas, um senhor nos seus cinquenta que lia o jornal, um outro dentro da mesma idade de fato e pasta de negócios, um rapaz na casa dos vinte a dormir, a rapariga ao lado, também de vinte e poucos, a ouvir o seu mp3, atrás de mim um casal que fazia sketches. As duas senhoras discutiam agora o número de anos em que o espectáculo estava em cena e o número de espectadores que tinham assistido ao mesmo. A senhora que tem maiores capacidades de argumentação (e julgo que também de imaginação) lança um número exorbitante de espectadores ao ar e as duas discutem agora sobre se esse número diz respeito ao auditório britânico ou mundial. Os meus olhos fixam-se no olhar perdido de um homem sentado junto da porta. Reconheço nele o vazio que sinto dentro de mim, a confusão, as interrogações. Leva as mãos apertadas no colo. Ao longe vejo o pica aproximar-se. Num gesto intuitivo ponho a mão ao bolso direito (meto sempre tudo no bolso direito). Os meus olhos arregalam-se ao sentir um cartão. Receosa, tiro o cartão do bolso, já o pica está ao lado do homem de olhar perdido. Esqueço na mão o cartão e fico curiosa com o homem que continua de olhar vidrado, perdido, sem se mover. O pica pergunta-lhe pelo bilhete. O homem não responde nada. Não se mexe. Não levanta o olhar. Sinto-me a tremer, a cabeça latejante. Sinto a sua angústia, a sua confusão. O pica volta a pedir-lhe o bilhete. O homem levanta agora o olhar para o pica; nota-se que está assustado e responde-lhe que não tem bilhete. Perguntam-lhe para onde vai ele. Depois de uma pausa, responde que não sabe. Perguntam-lhe de onde vem, onde mora, para onde vai e ele, com muitas pausas, responde sempre que não sabe. O pica ri-se desdenhosamente, enquanto a carruagem discute se o homem sem bilhete é um bêbado ou um drogado. Avisam-no que terá de sair na próxima estação. O pica vira-se para mim. Perdida nos pensamentos do homem sem bilhete nem identidade, havia-me esquecido de confirmar se tinha bilhete. Levanto o cartão sem confirmar, mas, impaciente, já o pica o arrancava das minhas mãos e dava um furinho. Agarro no cartão e a carruagem pára. De repente, todos os olhares se viram novamente para o homem sem bilhete nem identidade, de roupa limpa mas gasta. Ele, porém, continua entregue aos seus pensamentos, de olhar preso num ponto imaginado, tentando encontrar as suas respostas. Não havendo meio de reagir, o pica, impaciente, segura-o pelo braço e obriga-o a sair. O homem não reage. Ninguém reage. Fico a vê-lo afastar-se pela minha janela, parado na plataforma, como quem não tem para onde ir porque não sabe para onde vai. Olho para o cartão que seguro ainda na mão. Origem: Lisboa – Oriente. Destino: Santarém. O meu nome ou como fui lá parar, isso continuo sem saber...
*Foto de Pedro Moreira