sexta-feira, 21 de março de 2008

Dia Mundial da Poesia



*Foto por Nuno Inácio





Para onde vai essa mulher, a arrastar-se no passeio, agora que já é quase noite, com a almotolia na mão? Aproximai-vos: não nos vê.

Não sei o que é mais cinzento,

se o aço frio dos seus olhos,

se o cinzento debotado desse xaile

com que envolve o pescoço e a cabeça, ou se a paisagem desolada da sua alma.

Vai devagar, arrastando os pés, gastando as solas e gastando as lajes,



mas levada

per um terror

obscuro,

por uma vontadede evitar algo horrível.

Sim, estamos enganados.

Esta mulher não avança no passeio

desta cidade,

esta mulher vai por um campo hirto,

entre valas abertas, valas antigas e recentes,

e tristes montões

de humana dimensão, de terra removida,

de terra

que já não cabe na cova de onde se tirou,

entre abismais poços sombrios,

e turvas furnas súbitas,

cheias de barro e água lodosa e sudários andrajosas da cor do desespero.

Oh, sim, conheço-a.

Esta mulher conheço-a: veio num comboio,

num comboio extensíssimo;

viajou durante muitos dias

e durante muitas noites:

umas vezes nevava e estava muito frio,

outras vezes brilhava o sol e o vento sacudia

arbustos juvenisnos campos onde incessantemente estalam estranhas flores acesas.

rela viajou, viajou sempre,

enjoada pelo ruído das conversas,

pelos solavancos das rodas

e pelo fumo, pelo odor a nicotina rançosa.

Oh!:noites e dias, dias e noites, noites e dias, dias e noites,

e muitos, muitos dias,

e muitas, muitas noites.

Mas o horrível comboio foi parando

em tantas estações diferentes,



que ela não sabe ao certo nem como se chamavam, nem os lugares,

nem as épocas.

Ela

recorda apenas

que em todas era frio,

em todas era escuro,

e que ao partir, ao arrancar o comboio,

sempre compreendeu

como é brutal a investida da injustiça absoluta,

sentiu sempre

uma tristeza que era como uma centopeia monstruosa suspensa da sua face, como se com o arrancar do comboio lhe arrancassem a alma,

como se com o arrancar do comboio lhe arrancassem inumeráveis margaridas,

brancas como a sua alegria infantil na festa da aldeia, como se lhe arrancassem os dias azuis, o gozo de amar a Deus e essa von[tade de minutos em sucessão a que chamamos viver. Mas as lúgubres estações afastavam-se,

e ela assomava frenética às janelas,

gritando e retorcendo-se,



para ver afastar-se na infinita planície

isso, uma estação solitária,

um lugar

assinalado nas três dimensões do grande espaço cósmico

por uma cruz

sob as estrelas.

E adormoceu por fim.

sim, dormitou na sombra,

embalada por um fundo de longínquas conversas,

por gritos sufocados e risos embaciados,

como de gente que falasse através de mantas muito espessas,

apenas rasgadas de repente

por choros de crianças que acordam molhadas a meio da noite,

ou por cortantes guinchos de raparigas a quem nos túneis beliscam as nádegas, ... enjoada ainda pelo fumo do tabaco.

E viajou noites e dias, sim, muitos dias,

e muitas noites.



Parando sempre em estações diferentes,

sempre com uma ânsia turva de descer também, de ficar ela também, ai,

para sempre partir de novo com a alma lacerada,

para sempre dormitar de novo em trajectos infindáveis.... Não soube nunca como.

E seu sono era cada mais profundo,

iam cessando,

quase tinham cessado por fim os ruídos à sua volta:

só por vezes um riso como um punhal que brilha um instante nas sombras, um guincho como um limão acre que põe a noite amarela um momento.

E depois nada.

Só a velocidade,

só os solavancos de madeiras e ferro

do comboio,

só o ruído do comboio.

E esta mulher acordou na noite,

e estava só,

e olhou à sua volta,

e estava só,

e começou a correr pelos corredores do comboio,

de um vagão para outro,

e estava só,

e procurou o revisor, os serventes do comboio,

qualquer empregado,

algum mendigo que viajasse oculto sob um banco,

e estava só,

e gritou na escuridão,

e estava só,

e perguntou na escuridão

e estava só,

e perguntou quem conduzia,

quem movia aquele horrível comboio.

E ninguém lhe respondeu,

porque estava só,

porque estava só.

E continuou dias e dias,

louca, frenética,



no enorme comboio vazio, onde não vai ninguém, que ninguém conduz.... E essa é a terrível,

a estúpida força sem pupilas,

que ainda faz que essa mulher

avance, avance no passeio,

gastando a sola dos velhos sapatorros,

gastando as lajes,

entre valas abertas de um e outro lado,

entre montões de terra,

de dois metros de comprido,

com o tamanho exacto

da nossa ternura de corpos humanos.

Ah, por isso essa mulher avança (na mão, como o atributo de uma semideusa, [a almotolia), abrindo com amor o ar, abrindo-o com excelsa delicadeza,

como se caminhasse sulcando um trigal onde o grão está a formar-se,

sim, como se fosse sulcando um mar de cruzes, ou um bosque de cruzes,

[ou uma nebulosa de cruzes de cruzes próximas,

de cruzes distantes.

Ela,neste crepúsculo cada vez mais sombrio,

inclina-se,

vai curvada como um ponto de interrogação,

com a espinha dorsal arqueada

sobre o solo.

Espreita pelo caixilho do seu próprio corpo de madeira, como se espreitasse pela janela

de um comboio,

ao ver afastar-se a estação anónima

em que devia ter ficado?

Será que lhe pesam, que se suspendem do seu cérebro suas lembranças de terra em putrefacção,

e se lhe esticam tensos cabos invisíveis

desde suas sepulturas dispersas?

Ou como essas amendoeiras

que no verão estiveram carregadas de demasiados frutos, conserva ainda no inverno o tenro viço,



guarda ainda o doce ramo tombado

pela carga e pela companhia,

em seus tristes ramos nus, onde já nem pousam os pássaros?



Dámaso Alonso

5 comentários:

Nórdico disse...

grandioso ...

Leonor disse...

Adorei! Simplesmente lindo. Mas agora eu quero mesmo viajar de comboio. Deixar tudo para tras durante muito tempo

Expresso Oriente disse...

Nórdico: grandioso no conteúdo ou na dimensão? ;p

Leonor: 'bora lá viajar. Mas para outra dimensão. Até podemos apanhar este comboio do Alonso.

Leonor disse...

Ai sim por favor!! Cada vez a vida anda pior. Parece que anda tudo a andar para trás.

Paulo disse...

"Para a sombra que vaga, alheadamente,
A vida é, apenas,
Miragem, aparência, superfície...

Aos que, por Deus, foram eleitos Poetas,
A vida, descarnando-se,
Jubilosa descobre a sua essência.
A graça de que é feita...
E, aureolada de estrelas,
Entre acordes das liras, que a celebram,
Fulge, imortal,
Para além de si mesmo, - toda flor!

- Tu, paladino de revoltos sonhos,
Queixote ideal do aceso pensamento,
Viste o caminho, súbito, alumiado
Por uma chama, em cujo centro ardia
Rósea manhã...
(Passava a Primavera
Na Estrada de Damasco...)
Da tua voz um canto, erguendo as asas,
Um canto nunca ouvido,
Rasgou os véus espessos
Que a vida obscureciam:
E ela resplandeceu em sua essência!

E esse canto ficou
A crepitar nos ecos..."
(Mario Beirão)

A morte de um Poeta é sempre a presença de uma vida para sempre.

Abraço
Paulo