domingo, 24 de junho de 2007

"Apanhar o Comboio": encontros


*Foto por Tiago Gonçalves

- Não, não fiquei em casa dele. – respondeu Rafaela sem conseguir disfarçar um suspiro ou esconder o seu olhar triste e desiludido. – Ele levou-me para Coimbra, deixou-me à porta do Hotel Dona Inês e combinámos jantar na Avenida, no dia seguinte, às 21h. Mas...
- Mas?? Que se passou? – interrompeu-a Ana sem conseguir controlar a sua ansiedade.
- Mas ele não chegou a aparecer. Sabes, até me ri da minha estupidez. Ficar horas num restaurante à espera de um desconhecido. Não era isso que eu tinha programado e foi exactamente o que acabei por fazer. Horas à espera dele.
- Mas ele não te disse nada? Não explicou porque não apareceu?
- Como? Eu disse-lhe que me chamava Beatriz porque não queria que ele soubesse nada de mim, para que pudesse sair da vida dele da mesma forma que entrei e ele a mesma coisa! Nem sequer números de telefone trocámos! Eu estava, realmente, em vantagem! Sabia onde ele morava. Mas, como é óbvio, não lhe fui bater à porta! Não, nunca mais o vi... em vez dele apareceu outra pessoa.


Manuel acordou de manhã, na marginal, com os primeiros raios de sol e o barulho de algumas pessoas que corriam ao longo da marginal. Havia adormecido no carro. E se ela tinha saído sem ele dar por isso? Não a podia perder de vista! Resolveu esperar dentro do carro. Ainda era muito cedo e o homem com quem a vira deveria estar ainda lá dentro. O Ibiza preto continuava estacionado à porta do prédio onde haviam entrado os dois na noite anterior. Esperou pacientemente durante algumas horas até que o viu sair. Pensou em segui-lo, mas depois pensou que Rafaela ainda poderia estar lá dentro e não a poderia deixar escapar. Então, resolveu permanecer no carro. Poucos minutos depois, o homem moreno passava com uma rosa branca na mão e um saco de pastelaria. Caramba! Ele ia dar-lhe a volta! Rosas brancas... as suas flores preferidas juntamente com as tulipas brancas. Mas se ele levava uma rosa era porque ela lá havia passado a noite e ainda lá estava. Esperou com impaciência. Quase uma hora depois voltou a ver o homem sair de casa. Sozinho. Pensou em tentar entrar no prédio e surpreendê-la mas não tinha conseguido perceber em que apartamento eles estavam e era demasiado arriscado. Não queria fazer nenhum escândalo e o homem com quem ela estava era nitidamente mais forte do que ele. Acabou por continuar a sua espera, contrariado. O homem regressou passada meia hora. Passou uma hora. Duas horas. Três horas. E nada da Rafaela. Os dois estavam dentro de casa e não havia meio de saírem. Manuel encolerizava-se com o que ia imaginando que Rafaela pudesse estar a fazer com aquele homem. Ela era só dele! Nenhum outro homem poderia tocá-la! Entretanto, a meio destes seus pensamentos, viu a porta do prédio abrir-se e Rafaela e C. saírem de mãos dadas. Ela parecia feliz, de sorriso aberto, trocando suaves carícias com aquele homem de ar latino. Entraram no carro e Manuel voltou a segui-los, esboçando ideias de vingança contra aquele sujeito, aquele cretino que havia ousado tocá-la.

sexta-feira, 22 de junho de 2007

"Apanhar o Comboio": a partida


*Foto por João Lopes



Quando Manuel chegou a casa, dirigiu-se à sala, sentou-se numa das poltronas e pôs-se a ver televisão, como fazia todos os dias. Passados exactamente noventa segundos depois de se sentar, começou a gritar, como fazia todos os dias:
- Querida! Querida!
Nada... ao contrário do que acontecia todos os dias. Apenas o silêncio. O silêncio que tanto medo lhe causava.
- Queriiiiiida! Queriiiiiida!
Ainda nada.
- Rafaela! Oh, Rafaela! Rafaela! Querida!
Insistiu um bom bocado, como sempre fazia.
Passados cinco minutos sem resposta, levantou-se contrariado e foi buscar um pão à cozinha. Depois, percorreu todas as divisões da casa em busca da sua companheira. Nada da Rafaela. Talvez tivesse ido à loja buscar alguma coisa para o jantar. Tinha fome. Eram quase horas de comer. Voltou à cozinha para espreitar o que Rafaela tinha preparado e estranhou não ver nada no fogão, nenhuma comida feita ou semi-feita. Não era da Rafaela não ter ainda o jantar a preparar. Ela sabia que ele gostava de jantar cedo e fazia sempre tudo para lhe agradar. Na verdade, saiu-lhe a sorte grande quando conheceu a Rafaela. De todas era aquela com que mais ganhava. Ocupou-se dos seus filhos e quase quis ficar também com a guarda da neta. Aliás, só não o fez porque ele não havia revelado grande entusiasmo nisso e ela ficou apreensiva em relação a criar uma criança sozinha. Detestava as lides domésticas mas fazia-lhe tudo em casa e... era uma mina de ouro! Quando se conheceram, ele passava por sérias dificuldades, com os negócios a correrem mal, e foi ela que, primeiro, o sustentou e, depois, tomou as rédeas de tudo e recuperou a empresa. Se não fosse ela, hoje não teria nada. E se ela se fosse embora estava ciente de que perderia muitos clientes. Para juntar a tudo isto, era um excelente troféu para um quarentão exibir, passeando-se com uma miúda que tinha metade da sua idade. O telemóvel tocou, interrompendo-lhe o pensamento. Era a Elisabete. Outra gaja boa como o milho. Quarentona também, mas muito bem conservada. Loura. Ex-modelo. Fácil de levar para a cama como quase todas. Conhecia bem o tipo. Era casada com um empresário que lhe dava tudo menos atenção. Coitada. Precisava de um bom tratamento. E ele sabia e podia dar-lho.
- Elisabete, querida, adivinhaste os meus pensamentos. Cheguei agora a casa e ia ligar-te. Estou exausto. Tive um dia cinzento. A única coisa que me segurou foste tu, a tua lembrança. Pensar em ti dá-me tanta paz...
- O meu marido está a chegar. Tenho de desligar. Liga-me amanhã. Preciso de te ver novamente. – desligou.
Manuel levantou-se e foi até à varanda. Não havia meio de Rafaela chegar. Era estranho. Acendeu um cigarro. Sentiu um arrepio de frio. A noite estava a arrefecer e assustou-se com a ideia de ficar doente. Era um hipocondríaco. Acabou de fumar o seu cigarro dentro de casa e dirigiu-se ao quarto para ir buscar uma camisola de malha. Dirigiu-se ao roupeiro e, ao abri-lo, ficou estagnado. Toda a roupa de Rafaela tinha desaparecido. Correu até à salinha do fundo. A mala de viagem dela também já lá não estava. Rafaela tinha-o deixado! Sentiu-se mal. Começou a ficar com tonturas e sentiu o coração acelerado. Ninguém o deixava! Agarrou no telemóvel e pensou em ligar à irmã. Elas eram muito amigas. Demasiado até. Talvez Rafaela lhe tivesse dito alguma coisa. Quando ia para marcar os números, o telemóvel tocou. No visor apareceu o nome Sofia. “Oh, sorte!”, pensou. “O que quer esta agora?”
- Estou! – atendeu bruscamente.
- Senhor Rebelo Sousa, desculpe estar a ligar-lhe.
- Diga! – respondeu quase num grito.
- É que o Eng.º Tavares ligou a querer confirmar o almoço com a Rafaela, mas ela não atende o telemóvel. Eu vi-a junto à estação antes de ele ligar e era para confirmar se a viagem dela ao Porto foi antecipada.
- Junto à estação? Hã? Hum... Pois. Foi. Foi antecipada. – respondeu atrapalhado mas não querendo dar a perceber o que se passava. – Esse Eng.º é um cretino! Cancele! – e, sem mais, desligou-lhe o telefone.
Amaldiçoou-se e agarrou nas chaves do carro. Talvez não fosse demasiado tarde. Quando chegou à estação e se preparava para sair do carro à procura de Rafaela, viu-a sair do café, rindo-se. Ao lado dela vinha um homem moreno na casa dos trinta. Os dois entraram num Ibiza preto e arrancaram. Manuel apressou-se a ligar o carro e arrancou atrás deles.


Viagem Adiada


Foto por: manuel santos


... ansioso caminhava pela casa de um lado para o outro como quem gasta as solas dos sapatos por vingança de já não ter unhas por roer nas mãos e não ter já a flexibilidade suficiente que lhe permitisse roer também as dos pés... esperava e desesperava pela hora... a hora do tão esperado telefonema que o faria embarcar numa nova viagem... talvez uma viagem importantíssima... pelos menos assim esperava... mas não havia meio daquele telefone tocar... abriu e fechou tantas vezes a tampa estilo concha do seu telefone que até já a mola dava sinais de cansaço e perdera parte da força que sempre a caracterizou... antes até entalava dedos aos mais descuidados, agora... fechava-se lenta e vagarosamente como quem pede ajuda para o fazer...

Passeou-se mais uma vez pela sala nos sapatos novos... ou que o foram, pois os quilómetros que já haviam levado nas últimas horas faziam-nos parecer já semi-novos apesar de terem sido comprados propositadamente para a viagem no dia anterior... queria parecer bem apresentado ao chegar... também tinha comprado roupa nova... um fato muitíssimo elegante e muito ao seu estilo, mas esse não se atrevera sequer a usar, estava estendido em cima da cama, pronto para ser envergado como um cartão de visita... pelo menos era assim que ele pensava... ou pelo menos sempre fora assim que fora induzido a pensar por todos... já a sua mãe dizia... “...veste-te sempre bem meu filho... sai sempre de casa como se fosse para o encontro mais importante da tua vida... nunca sabemos o que a vida nos reserva ao virar da esquina...”. Apesar de ela própria nunca se ter preocupado muito com as aparências, a sua eterna sapiência de mãe levava-lhe a dizer estas coisas desde sempre... e ele foi interiorizando aquilo... como um dogma da sua vida...

Se a sua mãe o visse a fazer aquela figura e com as mãos naquele estado... já não restavam unhas, peles e outros por roer... o nervosismo instalado já o fazia ter vontade de ir à casa de banho de 5 em 5 minutos... coisa que fazia... levando o telefone com ele... que ridículo! – pensava para si próprio...

Finalmente tocou... atendeu sem ouvir sequer o segundo momento sonoro do “ring ring” executivo que tinha como toque, como convém... nada dessas musicas modernas ou toques do Jamba que o pudessem fazer passar vergonha nalgum lugar onde o seu telefone pudesse tocar... mas não disse nada... só ouviu e acenou com a cabeça ao ritmo da informação que ouvia apesar de não ser uma video-chamada... do outro lado alguém desligou no momento em que ele se despedia com a cordialidade que lhe era reconhecida... devido a problemas de agenda o compromisso teria que ser adiado e, consequentemente, a viagem tinha que ser adiada...

Descalçou-se e levou os sapatos na mão até ao quarto onde os colocou na sua caixa... pegou no fato deitado na cama e colocou-o dentro do seu saco próprio para o efeito e pendurou-o no roupeiro para que não se enrugasse... assim estaria tudo perfeito... para voltar a saltar do roupeiro ao ritmo de um novo telefonema...

quinta-feira, 21 de junho de 2007

"Apanhar o Comboio": o começo do fim

*Foto por Hugo Félix


C. mostrou-lhe onde ficava a casa de banho, entregou-lhe uma toalha limpa e disse que ia aproveitar para ir comprar o jornal e deixá-la mais à vontade. Quando voltou encontrou “Beatriz” na sala, enrolada apenas na toalha, de cabelos molhados a escorrerem pequenas gotas que desciam sobre os ombros e costas como uma lágrima que beija a pele e cujo percurso ele ia hipnoticamente seguindo. Não conseguiu disfarçar a atracção que sentia por aquela mulher desconhecida e o seu olhar não se desviava das linhas do seu corpo, admirando igualmente as pernas bem torneadas. A princípio, “Beatriz”, que procurava na mala uma roupa mais confortável, não deu pela sua presença nem o ouviu chegar, uma vez que tinha encontrado uma colectânea de música jazz e a tinha posto a tocar. Mas, de súbito, sentiu-se observada e, sem pensar, sorriu maliciosamente, pensando no que ia fazer. Toda a vida havia sido uma menina bem comportada, primeiro uma estudante aplicada, depois uma profissional empenhada, mais tarde a companheira fiel e dedicada, preocupada mais com o juízo que os outros faziam de si do que em viver a sua vida. Chegara a altura de viver essa vida há tanto parada, vivê-la realmente, experienciando cada momento como quem sorve a última gota de um néctar divino. Seguir os seus instintos. Aventurar-se. Foi assim que, fingindo não se aperceber da presença de C., “Beatriz” deixou a sua toalha cair, revelando a sua nudez. Virou-se lentamente e olhou-o nos olhos. C. não o percebeu pois fixou-se nos seios perfeitos da mulher que tinha à frente. Ela aproximou-se e beijou-o. Foi um beijo electrizante, algo que nenhum dos dois havia alguma vez sentido. “Beatriz” sentiu como se todo o seu corpo fosse invadido por uma sucessão de vagas de calor e energia. Demorou vários minutos, aquele beijo, e “Beatriz” sentiu uma onda de prazer apoderar-se de si como poucas vezes havia sentido num acto sexual. Apenas com um beijo. De corpos unidos, C. conduziu-a até ao quarto, enquanto ela lhe ia tirando a roupa pelo caminho. Possuíram-se de forma selvática e, no final, aninharam-se um no outro em descanso, abraçados, quase fundidos num só, sem trocarem palavra.
- Preciso de um duche. – disse “Beatriz” levantando-se da cama. – Vens? – perguntou-lhe em tom desafiador quando chegou à porta. C. não respondeu. Apenas sorriu e seguiu-a. No duche voltaram a amar-se.

- Tu... tu... Olha, por essa eu não esperava! Aquela da toalha caída no chão... Nem te reconheço! E... como é que ele foi?! Quer dizer... tu sabes! Como é que ele é?
Beatriz sorriu.
- Nem consigo definir. É... foi viciante. O C. é viciante. Um simples beijo com ele é uma explosão de prazer. O teu corpo tem espasmos de prazer! Apenas o facto de ele entrar em ti faz-te entrar em êxtase. Foi viciante... e inesquecível.
- Isso significa que não ficaram por aí? Continuaste a encontrar-te com ele? Carago! Isto de estarmos tanto tempo longe não dá com nada! Conta-me! Estou cada vez mais curiosa com o que aí vem. É que depois do que me contas eu já nem sei o que pensar ou o que esperar! Voltaram a encontrar-se? Não ficaste em casa dele outra vez, ficaste?

PERSPECTIVAS DE VIDA



...caiu violentamente sobre o banco do comboio e adormeceu... estava exausto, literalmente derreado... tinha feito um turno de quase 36 horas e a única coisa que queria era DORMIR...
Assim caiu, assim ficou... embalado pelos balanços da viagem adormeceu profundamente...

Estava com uma respiração pesada e sonora... dormiu longamente... mais até do que devia... acordou sobressaltado com uma travagem mais brusca – onde estou?? – questionou-se... longe... muito longe... demasiado longe do local onde deveria e queria estar... a sua paragem há muito que tinha passado...

Saiu na primeira oportunidade que teve... remeloso e de cabelo enrodilhado e espetado ao sabor do encosto onde poisara a cabeça... olhou em volta para a rua escura e deserta... alcançou a carteira no bolso de dentro do casaco e espreitou lá para dentro... chamou um taxi que o levasse ao destino pretendido... não iria correr o risco de adormecer de novo e perder novamente a paragem... ao chegar, tirou as chaves do bolso que de imediato caíram ao chão... baixou-se com dificuldade e com maior dificuldade ainda guiou-as até à fechadura... entrou em casa de forma algo abrupta... poisou o casaco na mesa da sala e, cumprindo o ritual, foi com a mão ao bolso do lado esquerdo das calças e tirou 2 fichas de 100, da roleta... olhou para elas e sorriu amareladamente... poisou-as em cima da mesa, ao lado do casaco e mergulhou literalmente no sofá... era a forma de dizer a si próprio que não havia perdido TUDO...

quarta-feira, 20 de junho de 2007

"Apanhar o Comboio": a primeira noite [revisto]

*Foto por "kiliturru"


- Estás a brincar. Tu... Tu foste para casa dele???? Estavas louca! Só podias! Tu não o conhecias de lado nenhum!
- Louca... Não estive louca ao viver com o Manuel? E alguma vez eu o conheci? Alguma vez eu pensei que ele se mostrasse o traste que mostrou? Alguma vez eu me imaginei a levar com uma versão decadente da família Adams? Louca estava nessa altura e precisei começar a sentir muita raiva dele, ao invés de pena de mim, para mudar a minha vida. E se mudei! Mas como te estava a contar... A noite correu de forma bem diferente daquela que estás a pensar.

C. fez um jantar simples e rápido, aproveitando algumas sobras que tinha no frigorífico. Jantaram, beberam mais um pouco e conversaram muito sobre tudo e sobre nada, sem entrar em grandes detalhes das suas vidas pessoais. Brincaram um com o outro e riram muito. “Beatriz” estava seduzida pelo bom humor dele e ele enfeitiçado pelo sorriso dos seus lábios carnudos e bem delineados. Entretanto, C. deixou “Beatriz” por não mais de dez minutos para arrumar a cozinha. “Beatriz” insistiu em ajudá-lo mas C. recusou, dizendo que não demorava muito e pedindo-lhe que se pusesse à vontade. Quando voltou à sala, encontrou-a a dormir tranquilamente no seu sofá negro. Olhou-a. Parecia exausta. Dirigiu-se ao armário da entrada e procurou pela última prenda de Natal da sua mãe. Ali estava ela. Tapou “Beatriz” cuidadosamente com a manta de malha escocesa e tentou não a acordar. Afagou-lhe o cabelo que lhe cobria o rosto em longos cachos dourados e deu-lhe um suave beijo nos lábios rosados. Apagou as luzes e foi para o seu quarto.

- Queres dizer que não aconteceu nada??? Uau! Saiu-te mesmo a sorte grande naquela noite!
- Sim. Talvez... Não, não aconteceu nada. Quando acordei no dia seguinte tive a certeza que não aconteceu nada porque para além das minhas bebedeiras nunca – e infelizmente – me provocarem amnésia, estava completamente vestida. Ele estava a tomar duche (conseguia ouvir a água a correr no chuveiro) e a mesa estava posta para o pequeno-almoço, com o detalhe de uma rosa branca a cobrir uma folha branca que me dizia para me servir à vontade. Eu sentei-me, servi-me de café e quando ele voltou perguntei-lhe se ele se importava que eu tomasse um duche e mudasse de roupa.

domingo, 17 de junho de 2007

"Apanhar o Comboio": Lusitânia Comboio Hotel



- Foste corajosa. – interrompera-a Ana, ao mesmo tempo que o comboio fazia mais uma paragem. Ainda estavam muito longe do seu destino – Madrid – onde se iam encontrar com a Maria. Já eram quatro da manhã mas nenhuma das duas tinha sono. Há um ano que não se viam e estavam excitadíssimas com este reencontro. Queriam pôr a conversa em dia e contar tudo à outra. – Se fosse eu, não conseguia...
- Pois, sabes como eu sou impulsiva. Faço tudo por impulso, de cabeça quente. A maioria das vezes dou-me mal com isso e não consigo escapar aos tormentos da minha consciência no dia seguinte. – o comboio arrancou bruscamente e aos soluços e as raparigas tiveram de se agarrar aos ferros das camas onde estavam deitadas para não caírem.

Ao longo do caminho conversaram muito, o que ajudou “Beatriz” a não adormecer... Bem, isso e o facto de estar extremamente excitada. Não conhecia aquele homem de lado nenhum e isso tornava tudo muito mais apelativo. Afinal, convivera quase dois anos com um homem a quem conhecia melhor que a sua imagem reflectida no espelho, a quem sabia de cor as virtudes e os defeitos, sendo os últimos bem maiores em número e qualidade, e precisava desesperadamente de conviver com um estranho de quem não soubesse nada, de quem não tivesse tempo para conhecer o que quer que fosse, nem virtudes nem defeitos, por quem não tivesse oportunidade de se apaixonar nem de fantasiar, com quem estivesse apenas o tempo necessário. Entretanto, C. começara a falar-lhe da sua vida pessoal, o que a deixou irritada porque estava a fugir aos seus planos. Era um homem ambicioso, que almejava abrir uma filial da sua empresa e tornar-se assim gerente, deixando as vendas. Tinha sido promovido há pouco tempo para chefe do departamento de vendas, mas, no entanto, precisava de continuar a efectuar algumas visitas ao domicílio, pois o seu chefe admitia-lhe o jeito para convencer algumas donas de casa. C. sorriu matreiramente à medida que contava isto. Tinha-se separado há pouco tempo e tinha um filho pequeno, a única coisa a que realmente dava valor e de que sentia falta. Do bolso da camisa tirou uma foto da criança e mostrou-a a “Beatriz”. “Beatriz” enterneceu-se. A criança era realmente linda, com um sorriso traquina e cara redonda. Devolveu-lha de olhar triste, lembrando-se dos seus projectos de ser mãe. Esteve quase a adoptar uma criança com o Manuel, a neta que a filha dele abandonara, mas com todas as mulheres a entrarem e a saírem de casa, “Beatriz” resolveu pensar melhor e com muito custo abriu mão da criança e resolveu não se envolver mais. Tentou mudar de assunto, começou a falar de viagens e planos para o futuro. Falou-lhe de como todos os anos se encontrava com as suas amigas da faculdade e que no próximo ano fá-lo-iam em Madrid. Contou-lhe que se formara em Coimbra e que uma vez que ia para a Figueira, talvez aproveitasse e no dia seguinte fosse matar saudades da cidade. C. disse-lhe que o escritório onde trabalhava ficava em Coimbra e que, se ela quisesse, no dia seguinte poderia dar-lhe uma nova boleia. “Beatriz” aceitou com um sorriso.
Entretanto, chegaram à Figueira e C. perguntou-lhe em que hotel ela queria ficar.
- Não tenho muito sono. Não me queres acompanhar noutra bebida? Também estou com alguma fome...
- Fazemos assim. Eu também mal jantei, como viste. Tenho uma garrafa de vinho branco no frigorífico e acho que se arranja qualquer coisa rápida para comer. Aceitas?
- Aceito, mas só se fores tu a cozinhar. É que eu não tenho jeito nenhum. Ia demorar horas e ainda íamos passar fome.
- Nesse caso, é a tua noite de sorte.
Em dez minutos chegavam a casa dele. Ela descalçou-se para caminhar sem tropeçar...

"Apanhar o Comboio": o início [actualizado]


*Foto por Rita Jaques


É uma coisa engraçada, esta dos comboios que apanhamos ao longo da vida.
Lembrava-se de que até à sua adolescência uma das coisas que gostava de fazer era ir para o miradouro da cidade, com vista sobre a via-férrea, ver os comboios passar. Entretanto, a vida foi dando muitas voltas e ela cansou-se de ser uma mera observadora, de ver tudo e todos passarem-lhe à frente e começou a apanhar todos os comboios que podia. Era uma passageira muito passageira. Nunca ficava mais tempo do que o necessário. A verdade é que depois de muitas traições e muitas lágrimas corridas, achou que devia ser ela a comandar a locomotiva. Chamava aos seus affairs “apanhar o comboio”. Tudo começou na noite em que o Manuel a tinha voltado a trair com mais uma quarentona. Era apenas mais uma das muitas traições que lhe tinham sido infligidas. Pôs a sua roupa toda numa mala e saiu de casa sem deixar palavra. Apanhou o táxi para a estação, mas ao invés de se dirigir para a bilheteira, atravessou a rua e foi sentar-se ao balcão do bar que ficava ali em frente. Pediu vodka atrás de vodka, sem proferir mais palavra. O empregado do balcão não tirava os olhos dela, sem saber o que pensar. Como viu que ela tinha a carteira cheia, calou-se e foi servindo. Além disso o bar estava às moscas. A rapariga era jovem, bem parecida, estava vestida elegantemente, não parecia uma galdéria, daquelas que por vezes ali passam. Ao quarto vodka a rapariga começou a chorar silenciosamente enquanto bebia, apenas soluçando baixinho de vez em quando. De olhos fixos no copo, não olhava ninguém. Foi quando entrou o C. O C. era um trintão bem parecido, vestido de fato e gravata, muito vistoso, moreno, cabelos pretos e com um sorriso irresistível. Sentou-se ao balcão, do lado dela, sem, inicialmente, lhe deitar qualquer olhar. Perguntou ao empregado o que se podia arranjar para comer e pediu informações acerca de uma morada. Era vendedor. Quando pegou na sua imperial, ouviu a rapariga pedir mais um vodka, com a voz já um pouco embargada, e pousou o seu olhar nela.
- Desculpe estar a meter-me, sei que não é nada comigo, mas se calhar não devia beber mais.
O empregado sentiu-se aliviado por alguém se meter, mas por outro lado amaldiçoou-o por lhe estar a acabar com a única fonte de rendimento da noite.
- Tem razão. Sem querer ser mal educada, não é nada consigo. – disse enquanto dava o último gole no copo. – Mais um, por favor. E uma imperial para este senhor. Não me vai deixar a beber sozinha, pois não?
- Agradeço a imperial, mas vou ter mesmo de a deixar só. Tenho de regressar ao trabalho daqui a pouco. A senhora como vai para casa? Quer que lhe chame um táxi?
- Não, eu vou apanhar o comboio. – disse com dificuldade.
- E a que horas é esse comboio?
- Não sei... ainda não comprei bilhete. Não sei muito bem para onde ir.
- A senhora não está bem. Quer desabafar, contar-me o que se passou? Já comeu alguma coisa? Traga uns aperitivos, por favor, e uma água das pedras.
- Ah, não! Detesto água das pedras. Quer pôr-me mal disposta?
- Não, quero evitar que fique, o que não deve demorar a acontecer. Quanto já bebeu?
- Pouco. Pouco.

Enquanto falavam ele foi-lhe despertando a atenção. Aquele era o tipo de homem que mexia com ela. Ficou com vontade de ser como as outras mulheres que lhe tinham invadido a casa, que não pensavam nas consequências, não se punham com moralismos, não pensavam, ponto. Era tão mais fácil. E ele atraía-a.
Entretanto, o telemóvel dele tocou. Atendeu e, vendo-o distraído, ela aproveitou para o olhar melhor, enquanto fazia sinal ao empregado para lhe servir um último vodka, coisa a que este prontamente se dispôs. O telefonema foi curto e de poucas palavras.
- Parece que hoje já não tenho mais trabalho. Talvez possamos conversar e explica-me melhor o que se passa consigo. E não devia continuar a beber ou não vai dar pela sua estação quando chegar a hora de ir para casa.
- É o último e não tenho casa. Já não vou para lado nenhum hoje e não quero falar de coisas que já não interessam. No entanto, agradar-me-ia a sua companhia. O meu nome é Beatriz e até há pouco tempo era relações públicas.
- O meu nome é C. e sou vendedor. Não sou destas bandas. Vim aqui em negócios hoje mas parece que perdi a noite. Ainda tenho de fazer a viagem de volta a casa. Sou da Figueira da Foz. E a Beatriz, para onde ia?
- Podemos tratar-nos por tu, feitas as apresentações? Bem, C., eu não sou de cá. Morava cá mas as coisas não correram bem e agora não sei muito bem para onde ir. Por isso não fui logo para a bilheteira. A Figueira da Foz parece-me bem... Acho que estou a precisar de ver e ouvir o mar, sentir a maresia no rosto. Ajuda-me sempre a pensar. Davas-me uma boleia?
- Com toda a certeza. Acho que nos ajudaremos um ao outro. Eu não tenho de fazer o caminho de volta sozinho e a Beatriz... e – tu - tens tempo para te recompor.
“Beatriz” sorriu pela primeira vez naquela noite. Não só por C. mas também pelos vodkas todos que já tinha bebido. Não queria saber muito de C. Naquela noite simplesmente queria esquecer-se de quem era e não pensar. Agir consoante os impulsos, os desejos. Naquele momento desejava-o.
Pegaram nas coisas e saíram. Ela dava pequenos passos, tentando com esforço não cambalear. O empregado sorria maliciosamente.

sexta-feira, 15 de junho de 2007

De passagem...




Habituado a longas viagens de comboio, eu e o alfa já nos tratamos por tu e sempre com situações, histórias, episódios engraçados ou desgraçados a acontecer. Desta vez foi uma única palavra que me chamou a atenção e me levou a mais uma divagação.

O começo da viagem prometia ser igual a tantos outros e o discurso inicial e monocórdico a dar as boas vindas, que fluía pelas colunas e flutuava pelo interior da carruagem, obedecia ao quadro habitual. No entanto, nesse mesmo discurso, uma palavra sobressaiu como nunca e se realçou para não mais esquecê-la durante a viagem: a palavra passageiros!
Nunca antes me tinha detido nela, no seu significado e aplicação neste contexto.
Uma análise mais profunda levou-me a concordar no seu sentido mais literal e a aperceber-me que de facto eu sou apenas um passageiro neste comboio.
Este comboio vai realizar esta e outras viagens, quer eu esteja nele ou não, quer o meu percurso seja curto ou longo; ele tem o seu rumo marcado e várias irão ser as pessoas que farão parte dele enquanto não chegarem ao seu destino.
Estou aqui apenas de passagem por este comboio e pelas terras por onde passo - pensei!
Daí a uma analogia com a própria vida e com o mundo foi o tempo de chegar a outra estação, Santarém para ser exacto. Pouco depois a viagem prosseguia e com ela a minha divagação.

Se repararmos, também nós estamos apenas de passagem por este mundo, somos passageiros nesta viagem que é a vida e que dura o tempo de chegarmos ao nosso destino, a que alguns chegarão, infelizmente, mais cedo que outros. Para uns será uma viagem conturbada cheia de incidentes, azares; para outros um passeio; para todos uma experiência única!
À medida que os quilómetros me afastam cada vez mais da minha infância (Viseu) e me aproximam do meu futuro (Tavira), começo a reparar nas pessoas que embarcaram comigo nesta viagem e até nelas encontro semelhanças com as posturas que encontro lá fora perante a vida!
Sempre existirão aqueles que preferem o lugar da janela, de modo a poderem viver melhor tudo o que se passa à sua volta, que têm interesse e gosto pelo conhecimento do que os rodeia ou passa por eles; por outro lado também há aqueles que fazem esta "viagem" de olhos fechados e alheios a tudo sem nunca chegarem bem a experienciar ou a aproveita-la, são pessoas a quem os acontecimentos passam literalmente ao lado; depois há aqueles que não sabem bem qual é o seu lugar e andam perdidos por aí; há os que ajudam os outros a encontrar o seu lugar; há os insatisfeitos que não estão bem em lado nenhum, criticam tudo e que passam a vida a mudar de lugar; há quem viaje carregado e lentamente e quem percorra o seu caminho leve e sem nada a demorá-lo; há os privilegiados que fazem a "viagem" com toda a comodidade e luxo na primeira classe; há os fora da lei que querem fazer a "viagem" de graça ou a enganar os outros; há os que espiam e vivem a vida dos outros e há até quem se engane e esteja a ir por um caminho que não quer.

Mas, encaremos nós de uma forma ou de outra a viagem, a verdade é que estamos todos juntos nela e estamos todos apenas de passagem. Compramos bilhete sem destino marcado, somos passageiros e, tal como nesta viagem que faço, também na outra uns saem para que haja lugar para outros que vão entrando. Mas, já que estamos aqui, porque não aproveitar e ver as vistas?
Apesar da analogia poucos pontos mais haverão em comum e serão mais as diferenças, certamente. E, se numa viagem eu anseio pelo seu fim, na outra rezo pelo seu prolongamento. No entanto uma ideia compartilho para as duas que é que ambas as viagens são bem mais agradáveis se estiver alguém ao nosso lado para as partilhar.



Nota: Foto e Texto daqui , com a participação especial do Nuno, cuja colaboração e amabilidade o A VER PASSAR COMBOIOS desde já agradece.
Texto revisto por Expresso do Oriente

quarta-feira, 13 de junho de 2007

A fuga


*Foto por Pedro Gomes


Fugir. Era o que precisava fazer. Sentia-se cada vez mais desesperada, mais só, mais impotente. Toda a vida fora uma lutadora, persistente, agarra-se aos seus sonhos e projectos com toda a garra e só os abandonava quando atingia os seus objectivos ou quando se apercebia que já nada mais podia fazer. Fora sempre mais teimosa do que a vida, enfrentando tudo e todos, principalmente quando toda a gente lhe dizia para desistir, que não valia a pena, que não ia conseguir. Era de paradoxos, se por um lado era a pessoa mais pessimista que alguém pode conhecer, esperando sempre o pior de tudo (a maior parte das vezes por não acreditar nela própria), era também ingénua e cheia de esperança, esperando sempre pelo amanhã que será sempre melhor, não querendo acreditar na maldade dos outros, esperando sempre o melhor de toda a gente, dando sempre novas oportunidades, tentando ser compreensiva. Mas agora, agora já não tinha forças para lutar, já não tinha por que lutar, nem nada a que se agarrasse. O sonho de uma carreira tinha sido destruído e não conseguia arranjar trabalho em lado nenhum. Claro que conseguia cunhas, mas o seu orgulho não lhe permitia aceitá-las. Riu-se. Orgulho. Tão orgulhosa para umas coisas e com tão pouco amor-próprio para outras. Os seus amigos estavam todos longe, perdidos nos quatro cantos do mundo. O homem que amava tinha-a deixado por outra mulher que nunca tinha deixado de esquecer. Já não tinha por que lutar. Sumiram-se-lhe as forças e entregou as armas. Encheu uma mala com roupa, agarrou no último ordenado e no subsídio de férias e dirigiu-se à estação. Apanhou o primeiro comboio que encontrou para fora do país e dirigiu-se para Madrid.

terça-feira, 12 de junho de 2007

200 desencontros... OU do alzheimer OU estou mesmo a precisar de férias longe de tudo e de todos



*Foto por Luís Ruivo






Passaram duzentas horas. Duzentas horas! Duzentas horas sem uma palavra! Sem escrever, sem atender o telefone. Nenhum sinal! Nenhuma palavra! Primeiro fiquei perplexa, sem entender o que se passava. Depois entrei numa crise de choro e angústia. Perguntava-me o tempo todo “porquê?”, “porquê?”, “porquê?”. Depois entrei em revolta, pensei para mim mesma que me estava a lixar para o que se passava, que não queria nem saber, não ia perder nem mais um minuto de sono. Foi a fase do "denial". Por último, entrei na fase que me trouxe aqui, de completo desespero, de ter de entender o que se passava. Tinha de perceber o porquê deste silêncio todo! Não discutimos, não houve nenhum desentendimento e de um momento para o outro... o silêncio. Pensou para si mesma que detestava o silêncio, era um barulho ensurdecedor para os seus ouvidos... tinha horror ao nada. Nem pensou. Assim que chegou a casa do trabalho, dirigiu-se ao quarto, abriu o roupeiro, tirou de lá uma pequena mochila e encheu-a com o básico. Agarrou na mala e na mochila, verificou se tinha consigo as chaves de casa e do carro e dirigiu-se à estação onde apanhou o primeiro comboio para Lisboa. Teve sorte. Não teve de esperar muito. Dois minutos depois ali estava. Felizmente também tivera a sorte de apanhar um Alfa e isso significava que não tinha de esperar muito para chegar a casa dele. Ele detestava surpresas, mas não lhe deixara outro remédio. Levou-lhe pouco menos de duzentos minutos para sair de sua casa e chegar até casa dele. Tocou à campainha. Ninguém atendeu. Entretanto, o seu telemóvel toca. “Querida, onde estás? Estás muito demorada? O voo atrasou-se e achei estranho que ainda não cá estivesses. Onde estás?” Esquecera-se completamente que tinha ficado de o ir buscar ao aeroporto, depois de uma viagem de negócios de oito dias...


segunda-feira, 11 de junho de 2007

RUMO AO... PRESENTE #2



Estava virtualmente só... muitas vezes a estação parecia-lhe deserta, apesar de superpovoada de gentes, de movimentos, de cheiros, cores e sabores... mas apesar de muitas vezes estar só... não se sentia nem sozinho nem solitário... muito pelo contrário... sentia-se no TOPO DO MUNDO... rodeado de todos aqueles amigos que não se vêm mas se sentem... de todas as pessoas que não lembramos... simplesmente porque nunca nos esqueceremos delas... estejamos onde estivermos...

P.S.: Já sei que as fotos eram "supostamente" a P&B, mas náo fui o primeiro a quebrar a regra... e os maus exemplos e as excepçoes dão nisto mesmo... hipótese a que outros também queiram usufruir do regime de excepção... mas apenas e só... porque se perderia o efeito pretendido com a foto em P&B... atenção a esse facto ;)

RUMO AO... PRESENTE #1



Foto por: filipe vilela




Lá estava ele... passeando-se por todos os cantos daquela estação desconhecida qual "puto" explorando um brinquedo novo, sedento por beber de tudo o que era novo e deslumbrante... esfomeado de viver... desejoso de ser FELIZ...


Era assim que ele sentia o passar das horas, minutos, segundos... ou até mesmo dos dias menos solarengos, onde a chuva e o cinzento do céu contrastavam com as cores vivas que lhe iam no coração... nem esses dias, melancólicos por natureza, lhe traziam mágoa ou saudade... talvez porque não se tem saudades daquilo que se tem... só daquilo que se perde... e ele não perdera nada... ganhara tudo... finalmente voltara a sentir de novo... COMPLETO...

domingo, 10 de junho de 2007

A desejada partida...


*Foto de Daniel Camacho





Sentou-se e, quando o comboio partiu, suspirou de alívio. O seu suspiro foi profundo e deixou fugir um sonoro “ai”, de tal forma que quem ia ao seu lado a olhou demoradamente. Ela ignorou e sorriu, olhando pela janela a cidade que deixava para trás. Finalmente, finalmente deixava tudo para trás. Nos últimos tempos sentia-se sufocada, quase claustrofóbica. Já nada a segurava àquela cidade para além da sua família e isso era muito pouco para si. Ali não se podia desenvolver profissionalmente. Poucas eram as oportunidades de procurar uma nova carreira ou novas oportunidades. Os seus amigos já tinham todos abandonado a cidade e construído vida na capital. Recordou, aliviada, o fim-de-semana que deixava para trás. Céus! Não ia sentir saudades nenhumas daquilo. Festa na aldeia, toda a gente reunida. Sentiu-se estrangeira (como diria Camus) na sua própria terra. Olhava os mais jovens e não conhecia ninguém, enquanto os mais velhos a olhavam como que a fazerem-lhe uma ressonância magnética! Qual raio-X! Eles analisavam-na à lupa! Já para não falar das conversas das doenças todas e mais algumas ou da típica questão “Então? Quando é que te casas?”. Depois havia também os embaraçosos encontros com as colegas de infância, com as quais já nada tinha a ver e com quem não sabia o que falar. Fugiu dali assim que pôde e dirigiu-se à cidade para assistir a um concerto. Foi sozinha pois há muito que se tinha habituado a seguir o provérbio “Mais vale só do que mal acompanhada”. Mas a verdade é que não tinha com quem sair. De qualquer forma, pensou que na cidade as coisas seriam melhor. Mas não foram. A cidade continuava mesquinha, tacanha, conservadora e preconceituosa. Vendo-a sozinha os olhares que se centravam nela variavam entre o jocoso, o alarve e o desaprovador. Por momentos sentiu-se embaraçada, mas depois resolveu ignorar e aproveitar. O concerto foi bom, o artista esforçou-se mas a cidade não apresentou um bom cartão de visitas. Eram todos demasiado ignorantes para apreciarem as criações feitas, as críticas, as construções. Olhou de novo pela janela e, ao ver que a cidade já não se avistava, sorriu. Começava uma vida nova...

quarta-feira, 6 de junho de 2007

Perder o comboio...


*Foto de Adriano Costa




Tinha chegado o momento de tomar uma decisão, o que implicava ter de partir num daqueles comboios. Havia feito a mala; a custo, mas fê-la. Colocou lá tudo o que lhe era importante: aquele CD tão raro, as fotografias de que tanto gostava e tantas histórias encerravam nelas, a sua máquina fotográfica, os livros dos quais não se conseguia separar, entre os quais aquela edição especial da sua banda desenhada, o Henry Miller e Albert Camus. Despediu-se da sua casa e de mais ninguém porque lhe custavam as despedidas; não porque não voltasse a ver as pessoas, mas porque isso seria demonstrar que tinha sentimentos por elas e que elas lhe fariam falta. Dirigiu-se a passo lento mas firme para a estação, de cabeça erguida, como quem, confiante, sabe para onde vai e para onde quer ir (uma e a mesma direcção). Porém, quando chegou à estação e se dirigiu à bilheteira, estancou... Não sabia para onde comprar bilhete. Bem, ele sabia as suas opções, mas não sabia por qual se decidir. Todas lhe pareciam tentadoras, a todas se queria agarrar e, ao mesmo tempo, não queria escolher nenhuma. Foi até lá fora respirar e fumar um cigarro. Observou as pessoas que chegavam e partiam naqueles comboios: estudantes, tropas, homens de negócios, casais, idosos. Pensou nas histórias que ele podia contar baseando-se nos rostos que observava e levou a mão ao peito. Bolas! Deixara a máquina dentro da mala e ia dar um trabalhão para tirá-la de lá agora. É pena, faria umas belas fotos, principalmente daquela bela mulher, a ruiva de olhos azuis. Sentou-se. Perdido nos seus pensamentos deixou os seus comboios passarem. Quando chegou à bilheteira, já esta havia fechado e os seus comboios não voltariam a passar. Perdera todas as oportunidades que tinha... e já não as poderia agarrar.

terça-feira, 5 de junho de 2007

Há dias assim...





Há dias assim, como hoje... em que nem comboios parecem passar... é um daqueles dias que parece que acordamos cedo demais (ou demasiado tarde) e toda aquela agitação e monotonia dos dias parece ter desaparecido... é como se vivessemos na “cidade fantasma” dos nossos pensamentos...
Ando pelas ruas em busca de uma estação que pareço não encontrar... se ao menos encontrasse um pequeno apeadeiro que me levasse a um destino melhor... procuro... mas numa busca pouco intensa, sem grandes stresses mas com alguma apreensão, a normal de quem procura mas não sabe o que procura ao certo... sou por assim dizer um turista que viaja de comboio em busca da melhor paisagem... talvez para um boa fotografia... um quem sabe um “souvenir” da vida... ou apenas um olhar... um olhar sobre este meu mundo...

Penso, reflicto, imagino... sonho acordado... e acordo por momentos nos quais me vem de imediato à mente um único pensamento... “...se o mundo é redondo, então terá ele principio? Terá ele fim? Se sim... estarei eu no principio ou no fim do mundo?!...” e em pensamentos me esvaio no calor dos dias, nos sons e nos cheiros... de um Mundo que não parece ser o meu muito embora o tenha e traga sempre com carinho... no coração...

sexta-feira, 1 de junho de 2007

A ver passar o comboio...


*Foto de Hugo Félix


Caminhava apressada, com um caminhar engraçado, visto que dava rápidas passadas curtas de tão pequena que era. Chegava a ser cómico vê-la passar. A cena ganhava ainda maior dimensão quando as pessoas levantavam o olhar até ao seu rosto e a viam rir-se à gargalhada, sozinha. Analisavam-lhe atentamente a cabeça, em busca de um qualquer aparelho auricular bluetooth, que tantas cenas estranhas e ridículas como esta causavam, quando nos cruzamos na rua com pessoas que aparentemente falam sozinhas num qualquer acesso de loucura. Mas, não; definitivamente aquela rapariguinha, pequenina e com cara de criança não falava com ninguém, até porque levava o cabelo apanhado num alto rabo-de-cavalo e facilmente se veria o auricular. “Devia ser maluquinha”, pensavam. Ela, porém, parecia ser imune aos comentários e aos olhares que se fixavam nela. Ria cada vez mais alto. Ao longo do caminho ia fazendo uma retrospectiva da sua semana e isso levava-la a rir a bandeiras despregadas. Recordava o despiste de carro, a indiferença do seu namorado, as gargalhadas deste quando ela lhe contou o sucedido ao pormenor, a notícia de que o carro não tinha arranjo e a consciência de que não teria possibilidades tão cedo de vir a adquirir outro. Recordava a discussão com a mãe quando, apesar de ter 26 anos, teimava em decidir-lhe a vida e obrigá-la a tomar decisões que não queria através de chantagens emocionais. Recordava as alunas que lhe ofereceram dois bonitos ramos de flores, não deixando de mencionar que “eram para a professora C. mas que ela tinha faltado e por isso...”. Soltou mais uma sonora gargalhada. Entretanto, o telemóvel tocou. Olhou para o relógio. Já tinha pouco tempo. Olhou para o visor do telemóvel e verificou com alegria e ansiedade que era do colégio onde tinha ido a uma entrevista há quase um mês. Benzeu-se antes de atender. E enquanto fazia isto apercebeu-se de que tinha um pé descalço. A sandália do pé direito ficara presa na calçada, entre pedras. Voltou para trás em pontas dos pés e sorriu embaraçada, olhando em redor a ver se alguém havia reparado. Atendeu o telemóvel.
- Dra., fala do Colégio N. Mandou para cá um currículo.
- Sim. Boa tarde. Diga, por favor.
- Diga-me, aqui na sua licenciatura não indica se o seu estágio é integrado ou não.
Ficou a pensar dois minutos antes de responder. Um pouco perplexa, sem saber se havia de se rir daquele déjà vu. Já havia tido aquela mesma conversa com aquela mesma pessoa, há bem mais de um mês.
- Eu já lhe respondi a esses pormenores e até já fui aí a uma entrevista.
- Já cá veio? O ano passado não foi?
- Não... há um mês. No dia 2 de Maio, salvo erro.
- Ah... pois... então está bem. Muito obrigada e boa tarde.
Desligaram.
A rapariguinha ria à gargalhada no meio da rua. Lembrava-se que quando aparecera para a entrevista também se tinham esquecido que a haviam marcado. Agora já nem se lembravam que a tinham entrevistado! Voltou a ficar descalça mas já nem se incomodava com os olhares ou com o ridículo. Só se conseguia rir à gargalhada.
Quando finalmente chegou à plataforma, ficou a ver o seu comboio partir ao longe. E era o último do dia...