domingo, 17 de junho de 2007

"Apanhar o Comboio": o início [actualizado]


*Foto por Rita Jaques


É uma coisa engraçada, esta dos comboios que apanhamos ao longo da vida.
Lembrava-se de que até à sua adolescência uma das coisas que gostava de fazer era ir para o miradouro da cidade, com vista sobre a via-férrea, ver os comboios passar. Entretanto, a vida foi dando muitas voltas e ela cansou-se de ser uma mera observadora, de ver tudo e todos passarem-lhe à frente e começou a apanhar todos os comboios que podia. Era uma passageira muito passageira. Nunca ficava mais tempo do que o necessário. A verdade é que depois de muitas traições e muitas lágrimas corridas, achou que devia ser ela a comandar a locomotiva. Chamava aos seus affairs “apanhar o comboio”. Tudo começou na noite em que o Manuel a tinha voltado a trair com mais uma quarentona. Era apenas mais uma das muitas traições que lhe tinham sido infligidas. Pôs a sua roupa toda numa mala e saiu de casa sem deixar palavra. Apanhou o táxi para a estação, mas ao invés de se dirigir para a bilheteira, atravessou a rua e foi sentar-se ao balcão do bar que ficava ali em frente. Pediu vodka atrás de vodka, sem proferir mais palavra. O empregado do balcão não tirava os olhos dela, sem saber o que pensar. Como viu que ela tinha a carteira cheia, calou-se e foi servindo. Além disso o bar estava às moscas. A rapariga era jovem, bem parecida, estava vestida elegantemente, não parecia uma galdéria, daquelas que por vezes ali passam. Ao quarto vodka a rapariga começou a chorar silenciosamente enquanto bebia, apenas soluçando baixinho de vez em quando. De olhos fixos no copo, não olhava ninguém. Foi quando entrou o C. O C. era um trintão bem parecido, vestido de fato e gravata, muito vistoso, moreno, cabelos pretos e com um sorriso irresistível. Sentou-se ao balcão, do lado dela, sem, inicialmente, lhe deitar qualquer olhar. Perguntou ao empregado o que se podia arranjar para comer e pediu informações acerca de uma morada. Era vendedor. Quando pegou na sua imperial, ouviu a rapariga pedir mais um vodka, com a voz já um pouco embargada, e pousou o seu olhar nela.
- Desculpe estar a meter-me, sei que não é nada comigo, mas se calhar não devia beber mais.
O empregado sentiu-se aliviado por alguém se meter, mas por outro lado amaldiçoou-o por lhe estar a acabar com a única fonte de rendimento da noite.
- Tem razão. Sem querer ser mal educada, não é nada consigo. – disse enquanto dava o último gole no copo. – Mais um, por favor. E uma imperial para este senhor. Não me vai deixar a beber sozinha, pois não?
- Agradeço a imperial, mas vou ter mesmo de a deixar só. Tenho de regressar ao trabalho daqui a pouco. A senhora como vai para casa? Quer que lhe chame um táxi?
- Não, eu vou apanhar o comboio. – disse com dificuldade.
- E a que horas é esse comboio?
- Não sei... ainda não comprei bilhete. Não sei muito bem para onde ir.
- A senhora não está bem. Quer desabafar, contar-me o que se passou? Já comeu alguma coisa? Traga uns aperitivos, por favor, e uma água das pedras.
- Ah, não! Detesto água das pedras. Quer pôr-me mal disposta?
- Não, quero evitar que fique, o que não deve demorar a acontecer. Quanto já bebeu?
- Pouco. Pouco.

Enquanto falavam ele foi-lhe despertando a atenção. Aquele era o tipo de homem que mexia com ela. Ficou com vontade de ser como as outras mulheres que lhe tinham invadido a casa, que não pensavam nas consequências, não se punham com moralismos, não pensavam, ponto. Era tão mais fácil. E ele atraía-a.
Entretanto, o telemóvel dele tocou. Atendeu e, vendo-o distraído, ela aproveitou para o olhar melhor, enquanto fazia sinal ao empregado para lhe servir um último vodka, coisa a que este prontamente se dispôs. O telefonema foi curto e de poucas palavras.
- Parece que hoje já não tenho mais trabalho. Talvez possamos conversar e explica-me melhor o que se passa consigo. E não devia continuar a beber ou não vai dar pela sua estação quando chegar a hora de ir para casa.
- É o último e não tenho casa. Já não vou para lado nenhum hoje e não quero falar de coisas que já não interessam. No entanto, agradar-me-ia a sua companhia. O meu nome é Beatriz e até há pouco tempo era relações públicas.
- O meu nome é C. e sou vendedor. Não sou destas bandas. Vim aqui em negócios hoje mas parece que perdi a noite. Ainda tenho de fazer a viagem de volta a casa. Sou da Figueira da Foz. E a Beatriz, para onde ia?
- Podemos tratar-nos por tu, feitas as apresentações? Bem, C., eu não sou de cá. Morava cá mas as coisas não correram bem e agora não sei muito bem para onde ir. Por isso não fui logo para a bilheteira. A Figueira da Foz parece-me bem... Acho que estou a precisar de ver e ouvir o mar, sentir a maresia no rosto. Ajuda-me sempre a pensar. Davas-me uma boleia?
- Com toda a certeza. Acho que nos ajudaremos um ao outro. Eu não tenho de fazer o caminho de volta sozinho e a Beatriz... e – tu - tens tempo para te recompor.
“Beatriz” sorriu pela primeira vez naquela noite. Não só por C. mas também pelos vodkas todos que já tinha bebido. Não queria saber muito de C. Naquela noite simplesmente queria esquecer-se de quem era e não pensar. Agir consoante os impulsos, os desejos. Naquele momento desejava-o.
Pegaram nas coisas e saíram. Ela dava pequenos passos, tentando com esforço não cambalear. O empregado sorria maliciosamente.

8 comentários:

Leonor disse...

Um dos muitos retratos da sociedade. Talvez com o acréscimo de uma coragem inexistente em muitas mulheres. Um optimo texto mesmo assim.

Expresso Oriente disse...

hummm... obrigada... mas onde viste a coragem?... mesmo que lá esteja, na ficção é sempre mais fácil.

Leonor disse...

Em deixar tudo, partir e não voltar. Deixar para trás assim tão facilmente, ainda que doloroso, o seu passado.

Expresso Oriente disse...

Seria, se a personagem o tivesse feito à primeira e não após sucessivas traições. Agora passando da ficção para a realidade, acho que deixa de ser tão difícil quando sentimos que já não deixamos nada, que já perdemos tudo, daí o ter construído uma personagem que levou algum tempo para deixar tudo... só o fez quando já não tinha nada.

Leonor disse...

Então aí há uma falta de coragem, mas sim uma conformidade. No entanto, como sempre, há um limite para tudo. Voltando à ficção que é realidade, uma pessoa, no caso da personagem pensa que o pareceiro irá sempre parar. Contudo chegou a um ponto de saturação. Ainda assim, não deixa de ser corajosa ao partir para outros caminhos, outras paragens. Muitas interpretações, percepções, pontas soltas por onde pegar.

Expresso Oriente disse...

Acho que acima de tudo tem a ver com não deixar que o amor pelo outro se torna maior que o amor por nós próprios e pela busca da felicidade. Usando as metáforas deste blogue,às vezes é necessário abandonar o comboio em que seguimos e partir para outras paragens.

InterRegionalíssimo disse...

Humm... congratulo-me com o facto de pelos vistos teres abandonado o Abrunhosa Style ;) e passares a lago mais literário ;) ao contrário de mim que sem estações nem comboios me sinto desinspirado ;)

Expresso Oriente disse...

pois... mas olha q isso é temporário. o abrunhosa faz parte de mim. eheheh.
quanto aos comboios e estações, estão sempre lá. É só estar com atenção.
Na 2.ª parte [e tu já lhe deves ter dado uma vista de olhos], a coisa torna-se mais explícita [refiro-me, é claro, aos comboios].