sexta-feira, 1 de junho de 2007

A ver passar o comboio...


*Foto de Hugo Félix


Caminhava apressada, com um caminhar engraçado, visto que dava rápidas passadas curtas de tão pequena que era. Chegava a ser cómico vê-la passar. A cena ganhava ainda maior dimensão quando as pessoas levantavam o olhar até ao seu rosto e a viam rir-se à gargalhada, sozinha. Analisavam-lhe atentamente a cabeça, em busca de um qualquer aparelho auricular bluetooth, que tantas cenas estranhas e ridículas como esta causavam, quando nos cruzamos na rua com pessoas que aparentemente falam sozinhas num qualquer acesso de loucura. Mas, não; definitivamente aquela rapariguinha, pequenina e com cara de criança não falava com ninguém, até porque levava o cabelo apanhado num alto rabo-de-cavalo e facilmente se veria o auricular. “Devia ser maluquinha”, pensavam. Ela, porém, parecia ser imune aos comentários e aos olhares que se fixavam nela. Ria cada vez mais alto. Ao longo do caminho ia fazendo uma retrospectiva da sua semana e isso levava-la a rir a bandeiras despregadas. Recordava o despiste de carro, a indiferença do seu namorado, as gargalhadas deste quando ela lhe contou o sucedido ao pormenor, a notícia de que o carro não tinha arranjo e a consciência de que não teria possibilidades tão cedo de vir a adquirir outro. Recordava a discussão com a mãe quando, apesar de ter 26 anos, teimava em decidir-lhe a vida e obrigá-la a tomar decisões que não queria através de chantagens emocionais. Recordava as alunas que lhe ofereceram dois bonitos ramos de flores, não deixando de mencionar que “eram para a professora C. mas que ela tinha faltado e por isso...”. Soltou mais uma sonora gargalhada. Entretanto, o telemóvel tocou. Olhou para o relógio. Já tinha pouco tempo. Olhou para o visor do telemóvel e verificou com alegria e ansiedade que era do colégio onde tinha ido a uma entrevista há quase um mês. Benzeu-se antes de atender. E enquanto fazia isto apercebeu-se de que tinha um pé descalço. A sandália do pé direito ficara presa na calçada, entre pedras. Voltou para trás em pontas dos pés e sorriu embaraçada, olhando em redor a ver se alguém havia reparado. Atendeu o telemóvel.
- Dra., fala do Colégio N. Mandou para cá um currículo.
- Sim. Boa tarde. Diga, por favor.
- Diga-me, aqui na sua licenciatura não indica se o seu estágio é integrado ou não.
Ficou a pensar dois minutos antes de responder. Um pouco perplexa, sem saber se havia de se rir daquele déjà vu. Já havia tido aquela mesma conversa com aquela mesma pessoa, há bem mais de um mês.
- Eu já lhe respondi a esses pormenores e até já fui aí a uma entrevista.
- Já cá veio? O ano passado não foi?
- Não... há um mês. No dia 2 de Maio, salvo erro.
- Ah... pois... então está bem. Muito obrigada e boa tarde.
Desligaram.
A rapariguinha ria à gargalhada no meio da rua. Lembrava-se que quando aparecera para a entrevista também se tinham esquecido que a haviam marcado. Agora já nem se lembravam que a tinham entrevistado! Voltou a ficar descalça mas já nem se incomodava com os olhares ou com o ridículo. Só se conseguia rir à gargalhada.
Quando finalmente chegou à plataforma, ficou a ver o seu comboio partir ao longe. E era o último do dia...

2 comentários:

InterRegionalíssimo disse...

Sim Sra., muito bem... com que então a boicotar as próprias regras do BLOG... as fotos não eram para ser a P&B? ;)

Expresso Oriente disse...

por acaso era para pôr uma notinha por causa disso, mas depois, como sou a gerente e eu é que mando, desisti de o fazer. a verdade é que achei esta foto perfeita para o texto e a p&b perdia o efeito. mas se achares que tens uma a p&b para colocar, substitui-se de bom grado :)

p.s.: it's been a hell of a week