sábado, 28 de julho de 2007

Caminhos-de-Ferro da Literatura

Por um tempo amaciado, de degelo, de fins de Novembro, cerca das nove da manhã, o comboio do caminho-de-ferro Petersburgo-Varsóvia aproximava-se a todo o vapor de S. Petersburgo. Estava tão húmido e havia tanto nevoeiro que amanhecia a custo; era difícil distinguir alguma coisa das janelas da carruagem a mais de dez passos à esquerda e à direita da linha. Entre os passageiros, alguns voltavam do estrangeiro; mas o grosso dos viajantes, gente simples e de trabalho, enchia a terceira classe e viajava de lugares não muito distantes. Como de costume, toda a gente estava cansada, de olhos pesados ao fim da noite, com frio, todos os rostos de um pálido amarelado, da mesma cor da neblina.
Numa das carruagens de terceira classe calhou ficarem frente a frente do lado da janela, desde o amanhecer, dois passageiros - ambos jovens, ambos quase sem bagagem, ambos com roupa longe de ser elegante, ambos dotados de notáveis fisionomias e ambos com vontade de, finalmente, meterem conversa um com o outro.


in O Idiota, de Fiódor Dostoiévski (1868)

terça-feira, 24 de julho de 2007

Hoje não há comboios


Foto por: rudolfo lopes


Parado na plataforma da estação olhava em volta como quem busca e não acha... e olhando de 10 em 10 segundos para o relógio lá continuava... de malas na mão, como se estivesse preparado para entrar no comboio a qualquer segundo... só que... não havia qualquer comboio... as linhas estavam desertas... imóveis... isentas de quaisquer vibrações... e não se ouvia qualquer som que anunciasse uma qualquer chegada...
Era um dia estranho... quente... abafado... e o suor escorria-lhe pela face em pequenas gotas que se formavam na sua testa e que desaguavam no seu queixo onde se lançavam em queda-livre até ao chão ardente da plataforma...
Um brisa tórrida fazia-se sentir de quando em vez... mas apenas para nos lembrar que o mundo não estava parado... exausto largou as malas... e voltou a olhar o relógio... olhou novamente em volta... ninguém... nem vivalma no horizonte mais longínquo até a vista pode alcançar... A pressa e a ansiedade que demonstrava tinham já dado lugar ao desespero... sentou-se em cima das malas... baixou a cabeça e olhou para o chão... num momento de loucura levantou-se e gritou: - Então, mas hoje não há comboios?! – mas a única resposta que teve foi a do seu próprio eco...

segunda-feira, 23 de julho de 2007

A ver passar comboios...



*Foto por Margarida Araújo


Mais uma vez perdi o comboio. Fiquei a vê-lo passar, de bagagem na mão e com o olhar a segui-lo, vendo-o partir. Vi toda a gente sair, uns apressados, outros de olhar vagueante, tentando localizar-se ou procurar alguém que os devia esperar. Depois deixei toda a gente passar. Uns igualmente apressados, com medo de ficarem para trás ou não terem lugar, outros a quererem prolongar a despedida, com abraços e beijos e mãos que à força se desenlaçam. E eu ali, junto à porta... De olhar fixo no interior da carruagem mas sem ver nada. O sinaleiro olhou para mim umas quantas vezes, vendo-me parada à porta, de malas na mão. E entretanto, o comboio lá partiu... Mais um que se foi, não tendo eu sido capaz de abandonar a estação e deixar tudo para trás. Fiquei ali, a olhar mais aquele que deixei fugir... Curiosa a vida, não é? Há tão pouco tempo (será?) não conseguia deixá-lo. Ali ficava, à janela, olhando lá para fora, passando todas as paragens e adiando a minha saída. Foi assim durante muito tempo (ou assim me pareceu) até que me forçaram a sair porque o comboio havia terminado a sua marcha e aqui fiquei... mas agora não consigo mais continuar viagem, mesmo sabendo que o meu lugar não é aqui e que chegou a hora de, de novo, partir.

sexta-feira, 20 de julho de 2007

The Brake to Reality



Sentado à janela da carruagem em que seguia rumo a um destino desconhecido entretinha-se a contar os postes que passavam lá fora à velocidade dos sonhos... sem nada para fazer... se ao menos o ipod funcionasse poderia ouvir musica... não percebia muito bem porquê mas não conseguia ouvir nada... devia estar avariado... não deu importância... alias, esse facto por si só já era extremamente curioso... ele, sempre tão preocupado com tudo... com as suas coisas, com os seus haveres estava estranhamente despreocupado... era como se tudo tivesse perdido a importância... pelo menos tudo o que era material...

Em tempos fora tomado por alguns como uma pessoa muito materialista... e única e exclusivamente preocupada com o seu sucesso, as suas vitórias pessoais, os seus troféus... o seu lucro... o seu dinheiro... o seu status...

Nunca tivera essa noção, alias, discordava inteiramente dela... era apenas alguém que queria ser feliz... que gostava de ter pequenas coisas... chamem-lhe pequenos luxos... talvez... mas luxos que o suor do trabalho pode pagar... para ele tudo se resumia a uma palavra... CONFORTO...


Com o passar do tempo estranhou o silencio que tomara conta daquela carruagem... não se ouvia um único ruído... que estranho – pensou... até vai quase cheio... mas logo retomou a sua contagem de postes... de repente uma súbita travagem... o comboio balançou bruscamente e sentiu-se um comprimir entre carruagem como se de um acordeão se tratasse... finalmente parou... e o pânico instalou-se e tomou conta de todos os passageiros... ou de quase todos... pois, estranhamente... ele ali continuava no seu lugar... calmo e sereno... quase sem dar pelo tumulto que se havia instalado... olhou em volta e viu pessoas a correr por entre os bancos em direcção à frente do comboio.... pareciam gritar... e falar alto... mas ele não os ouvia... era como se tivesse ficado surdo de repente... via o movimento... sentia a atmosfera pesada... mas não sabia o que se passava... ao seu lado passou uma senhora notoriamente abalada que se dirigia em sentido contrário à maioria dos passageiros... já deveria vir na volta... mas o que será que tinha acontecido para a senhora ter aquele olhar pesaroso e abalado... tentou interpela-la... - a senhora desculpe... o que é que passou? – disse num tom calmo e educado... mas não obteve resposta... parecia que a senhora nem o tinha ouvido... provavelmente ia nos seus pensamentos e não reparou que ele se estava a dirigir a ela...

Levantou-se e foi caminhando lenta e calmamente pela carruagem até à saída mais próxima... desceu do comboio... estava um calor abrasador... uma brisa tórrida e com um cheiro calcinado saía por debaixo do comboio e invadia todo o ar... avistava-se um grupo de pessoas reunidas em torno de algo ao fundo... na frente do comboio...Caminhou ao longo da linha e ao longo do comboio aproximando-se das pessoas... reparou que as rodas das carruagens apresentavam um tom brazeado... a travagem pelos vistos tinha sido violenta... ao chegar juntos das pessoas reparou que estava um vulto... algo no chão... junto à linha...seria uma pessoa?!... ou talvez um animal?!... não conseguia observar com certeza... as pessoas não se moviam e teve que contorná-las para saber o que motivava tamanha curiosidade... reparou nuns sapatos e percebeu que era uma pessoa... que lhe teria acontecido?!? Aproximou-se o mais que pôde... espreitou... uma pessoa moveu-se e conseguiu finalmente ver-lhe o rosto... era... ELE PRÓPRIO...

domingo, 15 de julho de 2007

Escolhas




Era noite cerrada... caminhando junto ao muro que dividia a estrada do lago estava ele... mãos nos bolsos... balbuciando-se como quem se embala pelos pensamentos ou por um copo a mais bebido num qualquer bar das redondezas... caminhava sem destino... um ouvido atento conseguiria distinguir um som abafado que as espaços lhe rasgava os lábios e se tornava audível... estava a cantar... ou melhor, a trautear uma velha musica da qual não sabia sequer a letra, nem como lhe tinha aparecido na cabeça... mas simplesmente apetecera-lhe trautea-la acompanhando o ritmos da água que se movia ao sabor das correntes e dos vento. Ao fundo da rua... no escuro do breu notou um vulto do qual apenas se destinguiam algumas linhas de força... era um velho pescador, que ocupava o seu lugar cativo de há muitos anos... nunca ninguém o vira retirar da água coisa alguma que se parecesse com peixe... mas ele lá estava, religiosamente, no seu spot favorito, lançando a linha à água e esperando... esperando... esperando... imóvel, impávido e sereno ali permanecia horas a fio... sem sequer dizer uma palavra. Ao passar por ele o homem trauteou um pouco mais alto... e ouviu de imediato um “XIIUUUU!!”... o que foi Mestre? – respondeu o homem. Não me diga que lhe estou a espantar o peixe?! – disse num tom de alguma troça. Mas apesar de ter permanecido ali por alguns segundos não obteve resposta alguma... Decidiu continuar o seu caminho, mas ao dar o primeiro passo afastando-se do local, ouviu finalmente a resposta do velho pescador... Não! Não me está a espantar o peixe! – disse ele com uma voz algo rude... mas está a retirar-me aquilo que realmente me faz vir aqui – continuou... toda a gente sabe que aqui não há peixe nenhum... ou se há, é demasiado esperto porque nunca ninguém o pescou... aquilo que aqui procuro é apenas e só a minha PAZ... sou ateu e a pescaria é como se fosse a minha religião... este local é a minha igreja... e já notou o belo templo que eu tenho!? Aqui consigo a paz de espirito que tanto busco, falo comigo mesmo, reflicto, tomo decisões... falo com o meu Deus... como o farnel que trago como se tomasse a hóstia e bebesse o vinho... seja ele o que for... não preciso de símbolos, as coisas são aquilo que quisermos que sejam... está tudo na nossa cabeça... cada pedra deste lago é como um santo para mim... cada isco que coloco no anzol é como uma oração... e aqui não preciso vir bem vestido e calçado para não ser alvo de falatório ou chacota... neste meu templo pode vir quem quiser, 24h por dia 7 dias por semana, 365 dias por ano... não há horários de missa nem de reza... é tudo como quisermos que seja...Ao ouvir todo esse discurso o homem reagiu de novo em tom de gozo e retorquiu – mas que Deus é esse o seu que não recompensa com um peixinho apesar de tanta dedicação... Realmente o senhor não percebeu nada daquilo que lhe disse... é igual a todos os outros... faz porque procura ser recompensado... e que recompensas dá Deus a quem vai à Missa todos os Domingos?! A vida eterna?! O meu Deus pratica um milagre todos os dias que aqui venho... tira-me o peso das preocupações, alivia-me a alma, ajuda-me nas dúvidas e conduz-me às respostas... é tudo o que preciso... “para que quero eu um bilhete de comboio se nem sequer sei onde fica a estação nem para que lugar quero ir?!?!...”

quinta-feira, 12 de julho de 2007

A Perseguição


...correndo pela rua lá ia ele... sôfrego... alguém o perseguia... mas quem?! Nem ele sabia dizer... só sabia que se sentia vigiado a cada esquina... alguém o espiava e registava cada movimento seu por entre as portadas fechadas das janelas daquela rua... por momentos parava... não aguentava mais... e olhava em volta... ninguém... a cidade parecia deserta... não havia vivalma... ninguém a quem pudesse pedir ajuda... na boca um sabor amargo e uma secura tal que parecia nem conseguir engolir a saliva... mas também não havia líquido algum... a garganta estava igualmente ressequida como a areia de um deserto, tão deserto como aquela rua... seria possível?! Onde estaria toda a gente?! Sentiu-se de novo observado... ouvir ao longe um som de passos... era volta de voltar a fugir... mas de quem?! E porquê?! O que teria feito?! Não se recordava de nada... nem do seu próprio nome... não sabia onde morava... onde estava e quem o perseguia... o seu corpo movia-se com um autómato em direcção à salvação... à fuga...
Estoirado... derreado... parou... caiu... com a face encostada às pedras frias da calçada sentiu uma gota de suor deslizar desde a sua testa passando junto ao seu olho entreaberto e cair, escorrendo pelo nariz... quase conseguiu ouvir essa gota a cair no chão... não tinha mais forças... não conseguia mover um único músculo... tinha atingido o seu limite físico... era agora que ia ser apanhado... mas nem os olhos conseguia manter abertos para ver quem o perseguia... vislumbrou apenas uma sombra... um vulto... a aproximar-se lenta e vagarosamente... estendendo-lhe um braço... tocou-lhe... ACORDOU!! NUM PULO!! Respiração bloqueada pelo susto... - Bom dia... são horas de acordar! Já estás levantado? – ouviu... olhou em volta ainda em apneia... e à medida que foi conseguindo finalmente respirar percebeu que estava no seu quarto... ensopado em suor... foi tudo um pesadelo - pensou... eram 7 da manhã e estava atrasado para apanhar o comboio...

segunda-feira, 2 de julho de 2007

Strawberry Gum



Foto por: Marco Coelho


...telefone a tocar, sinal de alarme... deitado no sofá acorda em sobressalto e corre em direcção a lado nenhum... pára! Olha em volta... e pensa... que faço eu aqui? Volta-se e corre de novo em direcção ao som cada vez mais estridente do telefone mas não o acha... não o encontra em parte nenhuma e à medida que o som aumenta mais se confunde e parece agora vir de todos os lugares... de todas as divisões da casa... procura e procura... com rapidez, com ânsia... procura até nos lugares mais estúpidos... gavetas da cozinhas, armário dos sapatos, no móvel da tv ou no meio dos CD... e nada... está desesperado... e o toque de súbito pára... alguém desligou... cansou-se de esperar que ele atendesse... será que vai voltar a ligar - pensa ele com os seus botões... e se ligar já?!? Ainda nem sequer achei o telefone... onde será que ele está?... como vou agora procurar? Se não o achei enquanto estava a tocar como o vou achar agora?!? Já sei! – disse!
Desceu vertiginosamente as escadas do prédio em direcção à rua... saiu porta fora e atravessou a estrada sem sequer olhar... por sorte ou por alguma conjuntura astrológica favorável não vinha a passar nenhum carro... dirigiu-se para a cabina telefónica mais próxima, ou pelo menos a mais próxima que conhecia, a da estação... meteu a mão ao bolso em busca de moedas e... o telefone... que estupidez!! Que idiota que eu sou!! – pensou em voz alta... como não pensei logo que estava no bolso... como não o senti enquanto procurava... número privado... que M*****, detesto números privados... como vou saber quem me ligou assim... ligo para o Sr. Privado?!? – disse em total desespero... sentou-se nos degraus de uma entrada de um prédio e agarrado ao telefone pensou – ao menos já sei onde está... se voltarem a ligar já posso atender... mas, e se não voltarem a ligar?! O melhor é ir para casa...



Levantou-se e sentiu-se preso... preso ao degrau onde se sentara... investiu mais uma vez na tentativa de se levantar... conseguiu... olhou para o degrau... NADA!! Como pode ser?? – pensou... que raio se passa aqui?! Torceu o tronco na tentativa de ver o que se passava... e nas suas calças encontrou... uma pastilha elástica... pelo cheiro... era morango... o seu aroma favorito...