quarta-feira, 2 de maio de 2007

Oriente - Santarém



Acordei. Estava um fim de tarde invernoso e frio. Olhei em redor, com os olhos a perscrutarem o local, tentando ambientarem-se, reconhecerem o espaço. Estava numa qualquer carruagem de um comboio. À minha frente, duas senhoras de idade, nitidamente de classe alta ou média alta, bem parecidas e cultas, trocavam impressões sobre o espectáculo Cats que haviam acabado de ver. Só assim soube em que mês estava: Outubro. Que dia era? Não me recordo. Recordo-me, porém, que também naquela hora o desconhecia. Confusa, analisava todas as pessoas à minha volta, na esperança de reconhecer alguém ou recordar, pelo menos, como fui ali parar. Para onde ia eu? Nem isso o sabia, meu Deus! As duas senhoras à minha frente continuavam a sua entusiástica discussão, disputando acerrimamente em relação ao que o espectáculo tinha de melhor: uma defendia o guarda-roupa, enquanto a outra argumentava que eram as canções. A carruagem ia cheia. Ao fundo desta estava uma mulher nos seus trinta e tais anos com duas crianças pequenas, um senhor nos seus cinquenta que lia o jornal, um outro dentro da mesma idade de fato e pasta de negócios, um rapaz na casa dos vinte a dormir, a rapariga ao lado, também de vinte e poucos, a ouvir o seu mp3, atrás de mim um casal que fazia sketches. As duas senhoras discutiam agora o número de anos em que o espectáculo estava em cena e o número de espectadores que tinham assistido ao mesmo. A senhora que tem maiores capacidades de argumentação (e julgo que também de imaginação) lança um número exorbitante de espectadores ao ar e as duas discutem agora sobre se esse número diz respeito ao auditório britânico ou mundial. Os meus olhos fixam-se no olhar perdido de um homem sentado junto da porta. Reconheço nele o vazio que sinto dentro de mim, a confusão, as interrogações. Leva as mãos apertadas no colo. Ao longe vejo o pica aproximar-se. Num gesto intuitivo ponho a mão ao bolso direito (meto sempre tudo no bolso direito). Os meus olhos arregalam-se ao sentir um cartão. Receosa, tiro o cartão do bolso, já o pica está ao lado do homem de olhar perdido. Esqueço na mão o cartão e fico curiosa com o homem que continua de olhar vidrado, perdido, sem se mover. O pica pergunta-lhe pelo bilhete. O homem não responde nada. Não se mexe. Não levanta o olhar. Sinto-me a tremer, a cabeça latejante. Sinto a sua angústia, a sua confusão. O pica volta a pedir-lhe o bilhete. O homem levanta agora o olhar para o pica; nota-se que está assustado e responde-lhe que não tem bilhete. Perguntam-lhe para onde vai ele. Depois de uma pausa, responde que não sabe. Perguntam-lhe de onde vem, onde mora, para onde vai e ele, com muitas pausas, responde sempre que não sabe. O pica ri-se desdenhosamente, enquanto a carruagem discute se o homem sem bilhete é um bêbado ou um drogado. Avisam-no que terá de sair na próxima estação. O pica vira-se para mim. Perdida nos pensamentos do homem sem bilhete nem identidade, havia-me esquecido de confirmar se tinha bilhete. Levanto o cartão sem confirmar, mas, impaciente, já o pica o arrancava das minhas mãos e dava um furinho. Agarro no cartão e a carruagem pára. De repente, todos os olhares se viram novamente para o homem sem bilhete nem identidade, de roupa limpa mas gasta. Ele, porém, continua entregue aos seus pensamentos, de olhar preso num ponto imaginado, tentando encontrar as suas respostas. Não havendo meio de reagir, o pica, impaciente, segura-o pelo braço e obriga-o a sair. O homem não reage. Ninguém reage. Fico a vê-lo afastar-se pela minha janela, parado na plataforma, como quem não tem para onde ir porque não sabe para onde vai. Olho para o cartão que seguro ainda na mão. Origem: Lisboa – Oriente. Destino: Santarém. O meu nome ou como fui lá parar, isso continuo sem saber...
*Foto de Pedro Moreira

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